Resumo da Obra “A Força Normativa da Constituição”, de Konrad Hesse

RESUMO DA OBRA “A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO”, DE KONRAD HESSE

De acordo com Ferdinand Lassalle, questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim questões políticas. A Constituição de um país expressa as relações de poder nele dominantes, quais sejam, o poder militar (Forças Armadas), o poder social (latifundiários), o poder econômico (grandes indústrias e capital), o poder intelectual (consciência e cultura gerais).

Esses fatores reais de poder formam a Constituição real de um país. O documento chamado Constituição – a chamada Constituição Jurídica -, nos dizeres de Lassalle, não passa de um pedaço de papel, eis que sua capacidade de regular e de motivar está limitada à sua compatibilidade com a Constituição real.

Trata-se de um pensamento ainda vivo, ressalta Hesse, pois que se manifesta explicita ou implicitamente ainda hoje.

A história constitucional ensina que, tanto na práxis política cotidiana quanto nas questões fundamentais do Estado, o poder da força afigura-se sempre superior à força das normas jurídicas, que a normatividade submete-se à realidade fática.

Conseqüentemente, a concepção da formação determinante das relações fáticas significa que a condição de eficácia da Constituição jurídica (coincidência entre realidade e norma), constitui apenas um limite hipotético extremo. É que entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional, existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar.

Ocorre que, segundo o autor, esse entendimento significaria a própria negação da Constituição jurídica, de modo que a Ciência da Constituição (Direito Constitucional) não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, e teria apenas a mísera função de justificar as relações de poder dominantes.

A fim de afastar essa doutrina, é preciso admitir que a Constituição contém, ainda que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A questão consiste, pois, em determinar se, ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças políticas e sociais, existe também uma força determinante do Direito Constitucional, a chamada força normativa da Constituição.

Hesse sugere, então, três abordagens que, uma vez analisadas, podem responder à esta indagação:

1-     O condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade político-social;

2-     Os limites e as possibilidades da atuação da Constituição jurídica;

3-     Os pressupostos de eficácia da Constituição.

No que diz respeito ao item 1, Hesse afirma que o significado da ordenação jurídica somente pode ser apreciado se ambas (ordenação e realidade) forem consideradas em sua relação, em seu contexto e no seu condicionamento recíproco.

Para aquele que contempla apenas a ordenação jurídica, a norma está em vigor ou está derrogada. De outro lado, quem considera exclusivamente a realidade política e social incorrerá em uma das duas alternativas: ou não consegue perceber o problema na sua totalidade, ou será levado a ignorar, simplesmente, o significado da ordenação jurídica.

O autor ressalta que, tanto no “positivismo jurídico” de Escola de Paul Laband e Georg Jellinek, quanto no “positivismo sociológico” de Carl Schmitt, percebe-se o isolamento entre realidade e norma, entre ser e dever ser.  Deve-se, portanto, encontrar um caminho entre a realidade despida de qualquer elemento de normatividade, de um lado, e a normatividade esvaziada de qualquer elemento de realidade, de outro. Isso somente poderá ser alcançado se não for escolhida exclusivamente alguma destas alternativas.

A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside em sua vigência, onde a pretensão de eficácia não pode ser separada das condições históricas de sua realização que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas.

Entretanto, afirma o autor que a pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização: elas são, entre si, autônomas.

A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Ela é determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação à ela. Assim, a força condicionante que a Constituição exerce sobre a realidade pode ser diferenciada da sua respectiva normatividade, mas, entretanto, não podem ser separadas ou confundidas.

Quanto ao item 2, Hesse assevera que a “Constituição real” e “Constituição jurídica” estão em uma relação de coordenação, ou seja, condicionam-se mutuamente, mas não dependem simplesmente uma da outra. A Constituição adquire força normativa conforme realiza sua pretensão de eficácia. Nesse contexto cabe analisar as possibilidades e os limites de sua realização.

Analisando as monografias de Humboldt, Hesse afirma que somente pode se desenvolver a Constituição que se vincula a uma situação histórica concreta e suas condicionantes, dotada de uma ordenação jurídica orientada pelos parâmetros da razão.

Se não quiser permanecer “eternamente estéril”, a Constituição – entendida aqui como “Constituição jurídica” – não deve procurar construir o Estado de forma abstrata e teórica, pois se as leis culturais, sociais, políticas e econômicas que imperam em uma determinada sociedade são ignoradas pela Constituição, carece ela do imprescindível germe de sua força vital.

A natureza peculiar e a possível amplitude da força vital e da eficácia da Constituição definem-se simultaneamente. A norma constitucional só atua se busca construir o futuro com base na natureza singular do presente. Mas a força normativa da Constituição não reside somente na adaptação inteligente a uma dada realidade. Muito embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes não só a vontade de poder, mas também a vontade de constituição.

Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que projeta o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside também na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita estar em constante processo de legitimação). Assenta-se ainda na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade.

Quanto ao intem 3, Hesse tentará enunciar, de forma resumida, os requisitos ou pressupostos que permitem à Constituição desenvolver sua força normativa. Ressalta o autor que eles se referem tanto ao conteúdo da Constituição, como à práxis constitucional.

a) Quanto mais o conteúdo de uma Constituição lograr corresponder à natureza singular do presente, tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa. Isso lhe há de assegurar, enquanto ordem adequada e justa, o apoio e a defesa da consciência geral. Deve também a Constituição mostrar-se em condições de adaptar-se a uma eventual mudança dessas condicionantes (sociais, políticas, econômicas, e principalmente as referentes ao estado espiritual de seu tempo). Por fim, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político- social. Deve, então, incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Pois caso a Constituição ultrapasse os limites de sua força normativa, a realidade haveria de pôr termo à sua normatividade, derrogando os princípios que ela buscava concretizar.

b) desenvolvimento da força normativa da Constituição não depende, como dito, só do conteúdo da Constituição, mas também de sua práxis. A concepção de vontade de Constituição deve ser partilhada por todos os partícipes da vida constitucional. O comprovado respeito à Constituição é fundamental, sobretudo naquelas situações onde sua observância revela-se incômoda (exemplo: sacrifica-se um interesse, ou alguma vantagem justa em favor da preservação de um princípio constitucional).

Também é perigosa para a força normativa da Constituição a tendência para a freqüente revisão constitucional, que abala a confiança na sua inquebrantabilidade, debilitando sua força. A estabilidade constitui condição fundamental da eficácia da Constituição.

Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação deve levar em conta as condicionantes dadas pelos fatos concretos da vida, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. Mas ao mesmo tempo em que a mudança das relações fáticas deve provocar mudanças na interpretação da Constituição, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer proposição normativa. Se o sentido de uma proposição normativa não é mais realizável, a revisão constitucional faz-se inevitável.

Hesse afirma, em síntese, que a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Assim, a pretensão de eficácia da Constituição somente pode se realizar se a realidade histórica é levada em conta. Graças ao elemento normativo, a Constituição ordena e conforma a realidade política e social e, portanto, não é simplesmente a expressão de uma dada realidade. Através da correlação entre ser e dever ser é que se dão as possibilidades e os limites da força normativa da Constituição. Desse modo, a Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade.

A efetividade dessa força normativa depende da amplitude da convicção acerca da inviolabilidade da Constituição (vontade de Constituição). Quanto mais intensa for a vontade da Constituição, menos significativas hão de ser as restrições e os limites impostos à força normativa da Constituição. Contudo, a vontade da Constituição não é capaz de suprimir esses limites, aos quais a Constituição deve se conformar. Desse modo, não se pode considerar que a Constituição configura um simples pedaço de papel, tal como afirma Lassalle.

Em caso de conflito com a realidade histórica concreta de seu tempo, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Existem pressupostos realizáveis que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a força normativa da Constituição. Apenas quando esses pressupostos não puderem ser satisfeitos, dar-se-á a conversão dos problemas constitucionais, enquanto questões jurídicas, em questões de poder.

A força normativa da Constituição não está assegurada de plano, configurando missão que somente em determinadas condições, poderá ser realizada de forma excelente. Compete ao direito constitucional realçar, despertar e preservar a vontade de Constituição, que, indubitavelmente, constitui a maior garantia de sua força normativa.

Hesse conclui o último capítulo alertando que não se deve esperar que as tensões entre ordenação constitucional e realidade política e social venham a deflagrar sério conflito. Não se poderia, todavia, prever o desfecho desse embate, uma vez que os pressupostos asseguradores da força normativa da Constituição não foram plenamente satisfeitos. A resposta à indagação sobre se o futuro de um Estado é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição.

Resumo da Obra”Perfis do Direito Civil”, de Pietro Perlingieri

RESUMO DA OBRA “PERFIS DO DIREITO CIVIL” DE PIETRO PERLINGIERI

Capítulo 1 – Realidade social e ordenamento jurídico

O Direito é ciência social que precisa de cada vez maiores aberturas; o conjunto de princípios e de regras destinado a ordenar a coexistência constitui o aspecto normativo do fenômeno social: regras e princípios interdependentes e essenciais, elementos de um conjunto unitário e hierarquicamente predisposto, que pode ser definido, pela sua função, como “ordenamento” (jurídico), e pela sua natureza de componente da estrutura social, como “realidade normativa”.

O direito positivo (vale dizer, o direito expresso por fontes predeterminadas e reconhecidas, predominantemente escrito) pode exercer uma dupla função, dependendo do fato de se propor a simplesmente conservar as situações presentes na sociedade, adaptando as próprias regras às de natureza social preexistentes; ou a modificar a realidade criando novas regras. O juristas é aquele que interpreta, individua e aplica as leis: no momento em que as desaplica, exerce uma atividade, às vezes, historicamente louvável, mas diversa daquela de jurista.

Por “código”, em geral, entende-se o documento (que é uma lei) contendo um conjunto de proposições prescritivas (das quais se extraem normas) consideradas unitariamente, segundo uma idéia de coerência e de sistema, destinadas a constituírem uma disciplina tendencialmente completa de um setor. O Código de 1865 caracteriza-se especialmente por colocar no centro do ordenamento a propriedade privada, sobretudo a propriedade imobiliária da terra.

O Código de 1942, ao revés, coloca ao centro da atenção a empresa, a atividade produtiva, a regulamentação do trabalho, a necessidade de organizar a produção, a forma política e jurídica do intervencionismo do Estado nas relações econômicas.

A Constituição da Republica assumiu, em relação a este problema, uma posição diversa. Uma coisa é ler o código naquela ótica produtivista, outra é “relê-lo” à luz da opção “ideológico-jurídica” constitucional, na qual a produção encontra limites insuperáveis no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.

A Constituição ocupa o lugar mais alto na hierarquia das fontes, precedendo, na ordem, as normas da comunidade européia, as leis ordinárias (e por isso os códigos, que são leis ordinárias, incluindo o código Civil), as leis regionais, os decretos do Poder Executivo e outros tipos de normas, usos, etc.

A solução para casa controvérsia não pode mais ser encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que parece contê-la, mas antes à luz do inteiro ordenamento jurídico, e, em particular, de seus princípios fundamentais, considerados como opções de base que o caracterizam. O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto constitucional.

Capítulo 2 – Fontes, técnicas, valores

Entre os múltiplos sentidos do termo, por “fonte do direito”  entende-se comumente não a norma, mas os fatos ou atos dos quais, através da interpretação, se extrai a norma. As fontes, por sua vez, são individuadas por (outras) normas denominadas freqüentemente “normas sobre a produção jurídica” .

A  distinção  normalmente indicada nos manuais é aquela entre fontes ditas formais e fontes ditas substanciais. Interessa sobretudo sublinhar as segundas, identificando a real origem das normas e dos princípios. No se ápice está a norma constitucional, conforme previsto nos arts. 134 e 138 da Constituição italiana.

As leis ordinárias do Estado, como expressão seja do  Parlamento (leis formais, art. 77, & 2, const.), seja do Poder Executivo, isto é, do Governo, (decretos-leis, art. 77 & 2, Const.), devem harmonizar-se com a constituição.

O respeito à Constituição, fonte suprema, implica não somente a observância de certos procedimentos para emanar a norma (infraconstitucional), mas, também, a necessidade de que o seu conteúdo atenda aos valores presentes (e organizados) na própria Constituição.

A norma constitucional seria um mero “limite” ou “barreira” à norma ordinária. Além de, ou mais do que, um limite à norma ordinária, uma expressão de princípios jurídicos gerais a serem utilizados somente em sede de interpretação de enunciados normativos ordinários. – pela qual a norma constitucional poderia disciplinar uma relação de direito civil unicamente através da concomitante aplicação de uma norma ordinária, de maneira que, à falta de uma norma ordinária aplicável ao casão concreto, aquela constitucional não poderia atuar sozinha.

Não existem, portanto, argumentos que contrastem a aplicação direta: a norma constitucional pode, também sozinha (quando não existirem normas ordinárias que disciplinem a fatttispecie em consideração), ser a fonte da disciplina de uma relação jurídica de direito civil.

Pode-se, portanto, afirmar que, seja na aplicação dita indireta – que sempre acontecerá quando existir na legislação ordinária uma normativa especifica, ou cláusulas gerais ou princípios expressos – seja na aplicação dita direta – assim definida pela ausência de intermediação de qualquer enunciado normativo ordinário -, a norma constitucional acaba sempre por ser utilizada.

Portanto, a normativa constitucional não deve ser considerada sempre e somente como mera regra hermenêutica, mas também como norma de comportamento, idônea e a incidir sobre o conteúdo das relações entre situações subjetivas, funcionalizando-as aos novos valores.

Pode-se entender por “autonomia privada”, em geral, o poder, reconhecido ou concedido pelo  ordenamento estatal a um individuo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas como conseqüência de comportamentos – em qualquer medida – livremente assumidos. Esta concepção mudou radicalmente na hierarquia constitucional dos valores, onde a liberdade não se identifica com a iniciativa econômica: a liberdade da pessoa, e a conseqüente responsabilidade, ultrapassa e subordina a si mesma a iniciativa econômica.

Não é possível afirmar, depois do quanto foi acima especificado, que a autonomia negocial não tem nenhuma relevância constitucional, nem, de outro lado, que se pode esgotar na autonomia contratual e, portanto, tornar-se relevante somente para dar atuação às vicissitudes de relações jurídicas patrimoniais.

A tentativa de individuar o fundamento da autonomia na garantia constitucional da iniciativa econômica privada (art. 41 Const.) é parcial. A negociação que tem por objeto situações subjetivas não-patrimoniais – de natureza pessoal e existencial – deve ser colocada em relação à cláusula geral de tutela da pessoa humana (art. 2º Const.). Os atos de autonomia tem, fundamentos diversificados.

A constatação que se acabou de fazer acerca do diverso fundamento constitucional da autonomia privada é máxima importância, ainda que ela não seja reconhecida adequadamente pela doutrina no seu global significado. Ao diverso fundamento corresponde uma diversa colocação na hierarquia das fontes. E a decisão do juiz, a sentença, não é “lei”. Daí a crítica às tendências que acentuam o especial papel das decisões jurisprudenciais. O conjunto das decisões representaria o direito vivente, sociologicamente recuperável; as regras e os princípios, ao contrário, concerniriam um mundo irreal ou constituiriam, quando, muito, uma simples linha de tendência.

É preciso considerar o papel da jurisprudência, o valor do precedente judiciário (as sentenças dadas precedentemente sobre um caso que o juiz considera análogo àquele a ser decidido) que, mesmo em sistemas diversos daquele italiano, nem sempre é vinculante. Se se analisa o papel da jurisprudência como fonte, verificar-se-á que não é tanto o ato jurisdicional a criar o direito, mas, sim, a sua ralio decidendi, isto é, o princípio que representa a idéia sobre a qual se funda a sentença; idéia, aliás, sempre ligada à fattispecie concreta, às suas peculiaridades que, freqüentemente, são únicas.

Quanto à disciplina dos institutos do Direito Civil, ela se configura em grande parte descentralizada em relação ao Código. A própria centralidade de um corpo legislativo em relação a outro, do código e das leis especiais, que à primeira vista parece uma escolha técnica e aparentemente neutra, esconde opções ideológicas tendentes a fragmentar e a pulverizar a unidade do sistema, e a recompor, saudosamente, unidades perdidas. A constituição rígida assume a centralidade, com função de garantia da unidade, como parâmetro de legitimidade e fonte de legitimação e de justificativa da própria atividade legislativa.

A noção de artigo não coincide com a de norma jurídica. Cada artigo apenas raramente encerra uma completa previsão normativa. Todavia, um mesmo artigo pode também conter mais de uma norma.

Ao lado da técnica de legislar com normas regulamentares (ou seja, através de previsões especificas e circunstanciadas), coloca-se a técnica das cláusulas gerais. Legislar por cláusulas gerais significa deixar ao juiz, ao intérprete, uma maior possibilidade de adaptar a norma às situações de fato.

As cláusulas que no Código de 1942 eram inspiradas por uma ideologia produtiva e economicamente auto-suficiente (autarcia) assumem um significado diverso se forem lidas e aplicadas na lógica da solidariedade constitucional.

Muito debatido, entre as questões de técnica legislativa, é o valor das definições. Quanto mais o ordenamento jurídico se identifica ou tende a se identificar com aquele social, político, econômico, tanto mais a identificação do valor fundado no critério normativo será conforme a realidade efetiva.

Os valores aos quais se deve fazer referencia na difícil obra de construção, de destruição, e de reconstrução do sistema são, portanto, aqueles jurídicos. Por interesse entende-se a relação entre um sujeito e um bem (interesse em sentido subjetivo: em algumas ocasiões falou-se de interesse como transposição, no plano jurídico, da necessidade e do desejo advertido pelo sujeito). Contrapõe-se a esta uma concepção objetiva (ou normativa) de interesse, como “exigência de bens ou valores para realizar ou proteger”, graduados hierarquicamente, em uma sociedade e em um ordenamento historicamente determinado.

Na análise, contudo, sente-se, desde logo, o embaraço de colocar no mesmo plano os interesses patrimoniais e aqueles existenciais, estritamente ligados à pessoa, e se adverte, também, a diversidade das problemáticas relativas a estes interesses – até então não suficientemente distintas -, com prejuízo das situações existenciais. A jurisprudência  dos valores constitui, sim, a natural continuação da jurisprudência dos interesses , mas com maiores aberturas para com as exigências de reconstrução de um sistema de “Direito Civil constitucional”, enquanto idônea e realizar, melhor do que qualquer outra, a funcionalização das  situações patrimoniais aquelas existenciais, reconhecendo a estas últimas, em atuação dos princípios constitucionais, uma indiscutida preeminência.

Com o termo, certamente não elegante, “despatrimonialização “, individua-se uma tendência normativa-cultural; se evidencia que no ordenamento se operou uma opção, que, lentamente, se vai concretizado, entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade  fim a si mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, como valores).

Capítulo 3 – Princípios

A forma de solidariedade com os objetivos da comunidade não é aquela à qual faz referencia o Texto Constitucional, que supera o mito do fim superindividual, não concebendo um interesse superior àquele do pleno desenvolvimento do homem.  Este último constitui princípio fundamental de ordem pública.

Com base no fundamento do principio solidarista, tentou-se superar a economia fundada na divisão do trabalho e na livre concorrência, centrando a atenção nas associações cooperativas de consumo: assim, criou-se a autogestão como base do solidarismo. Esta cessaria de constituir um momento de vida democrática e representaria uma eficiência organizadora na gestão e na produção.

Tais formas de solidariedade, embora presentes em muitas normas ordinárias, não dizem respeito à solidariedade constitucional, pela qual a participação das pessoas na gestão das formações sociais não deve dirigir-se ao eficientismo destas últimas, mas ao pleno desenavolvimento da pessoa. O tema da solidariedade constitucional, portanto, deve ser entendido em relação aos da igualdade e da igual dignidade social.

Uma das interpretações mais avançadas é aquela que define a noção de igual dignidade social, como o instrumento que “confere a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas a exercer as próprias aptidões pessoais, assumindo a posição a estas correspondestes”.

De acordo com a interpretação mais restrita, a igual dignidade social impõe ao Estado agir contra as situações econômicas, culturais e morais mais degradantes e que tornam os sujeitos indignos do tratamento social reservado à geralidade.  A valoração em negativo da igual dignidade social significaria apenas que a posição de uns não deve ser degradante em relação áquela de outros.

A Corte Constitucional afirmou que a igual dignidade social significa que “deve ser reconhecido a todo cidadão igual dignidade mesmo na variedade das ocupações ou profissões, ainda que ligadas a diferentes condições sociais; porque toda atividade lícita é manifestação da pessoa humana, independentemente do fim ao qual tende e das modalidades com as quais se realiza”. A igual dignidade social não se refere somente às profissões ou às atividades que se exercem.

A tutela da personalidade não é orientada apenas aos direitos individuais pertencentes ao sujeito no seu precípuo e exclusivo interesse, mas, sim, aos direitos individuais sociais, que tem uma forte carga de solidariedade, que constitui o seu pressuposto e também o seu fundamento.

Ao conceber a comunidade em função do homem, e não ao contrário, é possível encontrar, mesmo ao nível constitucional, uma hierarquia de valores e de interesses que as comunidades se propõem a alcançar e realizar.

Não se pode estabelecer uma paridade de valoração entre pessoa e formação social, atribuindo a esta última um valor em si; a formação social tem valor constitucional somente se atender à função do livre desenvolvimento da pessoa. Por conseguinte, entre as formações sociais é obrigatório estabelecer uma graduação. Não é legítimo colocar no mesmo plano sindicato, partido, cooperativa, família. O enfoque contrastaria com o Texto Constitucional porque colocaria no mesmo nível situações patrimoniais, ou melhor, atividades patrimoniais, e afetos, comunhões de vida e funções existenciais.

O princípio de “democraticitá”, entendido no sentido de conformidade com o princípio de democracia, envolve a valoração de muitos contratos associativos típicos.

Afirmar-se, comumente, que o art. 3 Const. Enuncia no & 1 a igualdade formal e no & 2 aquela substancial; a primeira seria expressão de uma revolução praticamente realizada, a segunda, ao contrario, de uma revolução “prometida”. Pela primeira, os cidadãos tem “igual dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, de raça, de língua, de religião, de opiniões políticas, de condições pessoais e sociais”; pela segunda, é “tarefa da República  remover os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e afetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do País”.

Todavia, a igualdade não se exaure na paridade de tratamento. As disparidades de condições econômicas e sociais podem, ou melhor, devem, ser tratadas de forma diversa, isto é, sem paridade.  A paridade de tratamento justifica-se, sempre, com fundamento na lógica da justiça retributiva e da par condicio, enquanto que a igualdade constitucional tende a realizar a igual dignidade social, removendo os obstáculos que limitam a liberdade dos cidadãos, de maneira a realizar a justiça social e distributiva.

Igualdade e solidariedade (art. 2 Const.) são aspectos de um mesmo valor que o legislador se propõe atuar: o pleno e livre desenvolvimento da pessoa.

A paridade de tratamento exaure-se no princípio retributivo. O princípio de igualdade supera a posição formal da paridade para realizar a igualdade substancial: quando existe desigualdade de fato, não existe espaço para o princípio da paridade de tratamento. Segundo uma elaboração, defronte de condições paritárias  deve reservar-se um tratamento paritário, e a partir daí se argumenta que o princípio de paridade pode ser aplicado mesmo num ordenamento que não prevê o princípio de igualdade, como demonstra o ordenamento civilístico de 1942. Na hipótese de contraste entre o princípio de igualdade, presente ao nível constitucional, e o princípio de paridade de tratamento, presente ao nível de legislação ordinária, prevalece o primeiro: o principio de paridade de tratamento encontra-se em uma situação de subordinação relativamente ao outro.

A afirmação contida no parágrafo 2 do art. 3, portanto, não é antagônica relativamente àquela contida no parágrafo 1 do mesmo artigo: uma e outra são expressões completas da cláusula geral de tutela da pessoa (art. 2), da centralidade do respeito dos direitos fundamentais no ordenamento republicano e, por conseguinte, da funcionalização das situações patrimoniais – propriedade e empresa – às situações existenciais.

Resulta confirmada a interpretação do art. 3 como necessariamente unitária: um e outro parágrafo estão em função recíproca, e ambos ditam uma única normativa, aquela da igualdade na justiça social, como testemunha de uma filosofia de vida orientada a impedir que possa existir igualdade sem justiça social e vice-versa.

Não é suficiente verificar que a norma ordinária não esteja em contraste com os preceitos expressos no § 1 do art. 3, porque o princípio de igualdade é violado seja quando, sem justificações constitucionalmente relevantes, cidadãos em situações iguais recebem um tratamento diverso, seja quando cidadãos em situações diferentes e desproporcionadas recebem um tratamento idêntico.

O instrumento mais imediato para realizar o preceito do & 2 do art. 3 é a intervenção legislativa reformadora e, principalmente, aquela administrativa, que se tornam possíveis mediante a “despesa pública” à qual o cidadão é obrigado a contribuir de acordo com a própria “capacidade” e segundo critérios de progressividade. A contribuição fiscal é, portanto, instrumento de justiça social e de promoção civil.

É necessário dizer com clareza que não é possível que a carga inovadora contida no art. 3, & 2 se realize em todo o seu alcance nas relações privadas. O valor da justiça social, expresso no Texto fundamental, no sentido e nos limites antes traçados, há de incidir no direito civil contribuindo, em sede interpretativa, para individuar o conteúdo específico que, concretamente, devem assumir as cláusulas gerais das quais é cravejada a legislação: da equidade à lealdade (correllezza), do estado de necessidade à lesão (stato de bisogno) e à causa não imputável, da diligencia à boa-fé, etc.

Nesta ótica, seria perigoso atribuir ao art. 3, §2, Const., o papel de norma eqüitativa ou de repartição eqüitativa (perequativa) nas relações privadas, reconhecendo-a como uma fonte de direito que fosse legitimadora de uma indiscriminada intervenção, integrativa e externa, da “mediação” da atividade judiciária.

Por outro lado, o próprio art. 3 & 2, norma clara e suficientemente indicadora,deveria ser utilizado pelo interprete em um exame discricional, não da tradicional harmonização dos interesses que pressupõe uma homogeneidade dos mesmos, mas em uma justaposição entre a libertação das necessidades (liberta dal bisogno), como valor a ser privilegiado, e a tutela do interesse econômico, como valor a ser sacrificado. A própria distinção entre direito privado e público está em crise.

Técnicas e institutos nascidos no campo do direito privado tradicional são utilizados naquele do direito público e vice-versa, de maneira que a distinção, neste contexto, não é mais qualitativa, mas quantitativa. – existe pontos de confluência tão precisos entre o privado e o público que seria mais correto falar de Direito Privado.

O Direito Civil não se apresenta em antítese ao Direito Público, mas é apenas um ramo que se justifica por razões didáticas e sistemáticas, e que recolhe e evidencia os institutos atinentes com a estrutura da sociedade, com a vida dos cidadãos com titulares de direitos civis. Neste enfoque, não existe contraposição entre privado e público, na medida em que o próprio direito civil faz parte de um ordenamento unitário.

O estudo do direito não deve ser feito por setores pré-constituídos mas por problemas, com especial atenção às exigências emergentes como, por exemplo, a habitação, a saúde, etc.os problemas concernentes às relações civilísticas devem ser colocados recuperando os valores publicísticos ao Direito Privado e os valores privatísticos ao Direito Público.

Resta a ser individuada uma nova sistematização  do direito. Há de se superar, de qualquer modo, a mentalidade pela qual o Direito Privado é liberdade de cada um de cuidar, por vezes arbitrariamente, dos próprios interesses, enquanto que o Direito Público, manifestação de autoridade e de soberania, dispõe de estruturas e serviços sociais para permitir ao interesse privado a sua livre e efetiva atuação.

Capítulo 4 – Interpretação

Por sistema jurídico entende-se a percepção do conjunto das fontes dentro de um esquema conceptual que, por um lado, represente o sentido profundo de cada norma através de suas conexões com outras e das conexões destas com os princípios; por outro, que exprima a unidade entre a construção jurídica e a sua aplicabilidade social, através da radicação do direito na cultura entendida em sentido amplo. À época da emanação do Código, o sistema jurídico era visto principalmente na acepção recebida pela pandectista: os dogmas imperantes – acreditados por uma longa tradição de elaboração do direito romano – eram o caráter sacro da propriedade privada e o poder da vontade do sujeito.

Ao lado de uma acepção tradicional de “formalismo”, vista como o estudo do direito que não privilegia o conteúdo sobre a forma, registra-se, mais recentemente, a tendência a transformar a investigação do jurista na análise da linguagem do legislador. Esse método também é formalista, já que reduz a linguagem a um mero “objeto” do conhecimento do interprete: a linguagem seria, portanto, separável da realidade circunstante que ela exprime e na qual se exprime.

No movimento formalista deve ser colocado também quem isola a praxe da reflexão: a reflexão sobre conceitos é usualmente definida na ciência jurídica como “dogmática” pregos do termo: não se trata de postulados evidente por si só ou de qualquer modo subtraídos à livre discussão, mas de conceitos elaborados com base no ordenamento.

Passe-se da dogmática ao dogmatismo quando a analise conceitual degenera no gosto pela classificação finalizada a si mesma, esquecendo a sua função e alienando-se da realidade. A superação da garantia formal da norma é inadmissível no nosso sistema constitucional: a superação da norma jurídica a favor daquela  social viola o princípio de legalidade e aquele de democraticitá, na medida em que a produção de normas é sempre – direta ou indiretamente – assistida pela garantia da democraticitá; garantia totalmente ausente onde a norma seja, simplesmente, fixada pelo mais forte.

A “despatrimonialização” do direito civil é o caminho para a reconstrução do sistema. Não é uma moda, mas uma escolha de política legislativa de alcance histórico. Um caminho “difícil”, mas “possível”, sobre o qual as convergências não devem ser só teóricas.

O conteúdo não se forma no momento da produção do texto por parte do legislador: a produção é uma fase à qual é preciso flanquear uma outra, ou seja, a recepção do texto por parte do destinatário, isto é, o intérprete. Portanto, o direito é positivo “se, mas também somente se, ele é interpretado, e é positivo só na medida em que for interpretado”: a positividade do direito é a sua interpretabilidade.

A negação do estar em si mesmo do direito positivo implica a recusa de métodos puramente lingüísticos da interpretação, como se a interpretação consistisse unicamente na análise da linguagem, puramente formal, do legislador.

A guiar a atividade do intérprete não deve ser a sua teimosa orientação subjetiva, mas, antes, o cumprimento da sua tarefa de respeitar e, com a própria ação, de realizar a legalidade constitucional.

Portanto, a interpretação é, por definição, lógico-sistemática e teleológico-axiológica, isto é, finalizada à atuação dos novos valores constitucionais. Em um ordenamento “aberto”, como sem dúvida é aquele italiano, os enunciados normativos expressos não são exaustivos em si mesmos: eles devem ser especificados em conformidade com o que dispõe a tábua de valores que é a base do ordenamento. A interpretação axiológica representa a superação histórica e cultural da interpretação literal.

As palavra assumem no tempo significados mesmo qualitativamente diversos, segundo a cultura e a sensibilidade do destinatário.

Em suma, a qualificação de clara, reservada a uma expressão lingüística, mesmo mínima, é relativa, não tem um alcance objetivo absoluto.

A qualificação de clareza que pode ser atribuída a um texto legislativo tem sentido, ao contrário, quando seja o resultado, um poslerius da sua interpretação. Será claro aquele texto que, lido em conexão com os outros, com os princípios e os valores juridicamente relevantes, adquirir significado normativo sem que seja necessário forçar abertamente a sua letra.

Quanto ao primeiro ponto, a legalidade constitucional impõe uma interpretação da norma ordinária ou de grau inferior, à luz dos interesses e dos valores constitucionalmente relevantes, de maneira que limitar-se à letra clara ou ao sentido próprio das palavras (é possível?)  ou à intenção do legislador, passado ou presente,significaria colocar-se fora desta legalidade, em contraste também com a previsão do poder-dever do juiz de suspender o juízo e de propor a questão de ilegalidade da disposição normativa.

Se toda norma exprime sempre um princípio, este deve ser confrontado com os princípios fundamentais. O recurso à ralio iuris, isto é, à sua individuação, é um problema de cotejo do princípio, que a ralio representa, com os outros princípios. Diante da inesgotável variedade de casos concretos, a norma representa para o intérprete um modelo a ser seguido, não um comando específico dado pela Autoridade para um específico destinatário.

As disposições preliminares ao Código Civil em tema de interpretação geral das leis não tem, portanto, valor constitucional, nem se situam acima da constituição: elas devem harmonizar-se a adequar-se à normativa constitucional, sob de serem consideradas ilegítimas; de maneira que não podem ser aceitas dogmaticamente, mas devem ser interpretadas em respeito à hierarquia das fontes e dos valores.

Se as precedentes considerações tem fundamento, não deve ser aceito o almejado retorno à exegese à literal das normas consideradas individualmente. O jurista intérprete não deveria, portanto, nem pressupor o sistema, nem construí-lo: a sua tarefa limitar-se-ia à análise textual (exegese) de cada lei. Cada lei é elevada a sistema, tendencialmente autônoma e incomunicamente com outras leis:

Um ordenamento assistemático, isto é, feito de normas que não exprimem relações internas, não encontrou ate hoje uma verificação histórica.

Ao contrário, justamente porque, por definição, as leis especiais não são mais consideradas atuativas dos princípios codidicísticos, mas daqueles constitucionais, elas não podem ter lógicas de setor autônomas ou independentes das lógicas globais do quadro constitucional; elas também devem ser sempre concebidas e conhecidas obrigatoriamente no âmbito do sistema unitariamente considerado.

O direito especial tem sua peculiaridade e sua limitada autonomia, mas sempre derivada e vinculada pelas diretrizes e pelos valores do sistema. Isso não significa nostalgia da unidade e do antigo primado do Código Civil, mas respeito substancial da legalidade constitucional que garante a unidade histórica e jurídica.

É verdade que qualquer interpretação deve ser sustentada por uma argumentação rigorosa, cientificamente válida, e que se deve encarar o problema da interpretação no sistema aceitando que a norma exprima seu valor vinculante  para o intérprete e ainda mais para o seu destinatário.

A interpretação é atividade vinculada mais especificamente às escolhas e aos valores do ordenamento; é controlada, porque deve ter uma motivação idônea, adequada; é responsável porque o dolo e a culpa grave na decisão justificam a responsabilidade da parte que se encontre em tais condições (art.55 Cód. Proc. Civ.; 54& 2, const.). a revisão da decisão, mediante os remédios processuais, confirma que a atividade do juiz não é arbitrária, mas motivada e vinculada. A atividade de interpretação é criadora no sentido de que manifesta historicamente os valores do ordenamento, individua a normativa idônea, constitui um precedente doutrinal e jurisprudencial com uma sua autoridade e um seu peso nas elaborações sucessivas da jurisprudência e da ciência; julga a compatibilidade da norma ao caso concreto.

O ordenamento não constitui um sistema imóvel, fechado entre os confins de sua completeza formal e lingüística, mas um sistema aberto e sensível á mudança dos fatos e da historia, resultado de uma contínua, incessante obra de conhecimento cientifico amparado por uma investigação empírica que não se limita a operar com símbolos, mas com fatos, isto é, com conteúdos verificáveis.

O interesse nesta distinção é fundamental porque somente as normas excepcionais, e não aquelas especiais, não são interpretáveis por analogia (art. 14 disp. Prel. Cód. Civ.). As normas, a distinção entre normas regulares e excepcionais inspira-se nos princípios que constituem o fundamento racional das normas. Se estas são, em um certo sentido, conformes aos princípios e ao sistema normativo, são regulares; se se inspiram num princípio diverso da regra que caracteriza o sistema, são excepcionais.

Qualificar uma norma como sendo regular ou excepcional não é um juízo absoluto. As regras sobre a interpretação devem adequar-se ao quadro que hoje se encontra mudado seja pela presença do direito comunitário, nas suas áreas de competência, seja pelo respeito aos princípios imodificáveis de ordem pública constitucional de cada Estado membro da Comunidade européia.

Resumo da Obra “Teoria do Ordenamento Jurídico” de Bobbio

RESUMO DA OBRA “TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO”, DE NORBERTO BOBBIO

Capítulo 1 – Da norma jurídica ao ordenamento jurídico

Neste capítulo, o autor, depois de tecer breves considerações acerca da inexistência de doutrinas em torno do chamado “ordenamento jurídico”, afirma que este livro será um complemento de sua obra anterior, denominada “Teoria da norma jurídica”.

Afirma, ainda, que, na busca de uma definição do Direito, a norma jurídica, em si, não é suficiente para defini-lo, sendo, portanto, necessária a perspectiva do ordenamento jurídico para fazê-lo.

Nesse contexto, dá a sua própria definição de direito, identificando-a com a da própria norma jurídica, para quem é a norma “cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada”.

O termo direito, para o autor, na acepção do direito objetivo, indica um tipo de sistema normativo e não um tipo de norma. Diz respeito, pois, a um dado tipo de ordenamento, cujo significado geral seria um verdadeiro “conjunto de normas”. Estas, por sua vez, podem ser de três tipos: as que permitem determinada conduta, as que proíbem e as que obrigam determinada conduta, donde conclui pela impossibilidade fática de existência de um ordenamento jurídico composto por uma norma apenas.

Capítulo 2 – A unidade do ordenamento jurídico

O autor distingue os ordenamentos jurídicos em simples e complexos, conforme as normas que os compõem derivem de uma só fonte ou de mais de uma.

A complexidade de um ordenamento jurídico deriva do fato de que a necessidade de regras de conduta numa sociedade é tão grande que não existe nenhum poder (ou órgão) em condições de satisfazê-la sozinho, portanto, há uma verdadeira multiplicidade das fontes das quais afluem regras de conduta.

Ressalta, também, o autor, que a complexidade do ordenamento, não exclui a sua unidade, que, segundo a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, proposta por Kelsen, é alcançada através da chamada “norma fundamental”, ou seja, aquela suprema, que não depende de nenhuma norma superior, e sobre a qual repousa toda a unidade do ordenamento.

Relativamente à validade das normas jurídicas, Bobbio considera válida a norma que pertence a um ordenamento, concluindo que uma norma é válida quando puder ser reinserida, não importa se através de um ou mais graus, na norma fundamental.

A norma fundamental é, portanto, simultaneamente, o fundamento de validade e o princípio unificador das normas de um ordenamento.

Aludindo à relação entre o Direito e a força, o autor informa que a definição do Direito não coincide com a de justiça. A norma fundamental está na base do direito como ele é (o Direito positivo), não do Direito como deveria ser (Direito justo). O Direito seria, então, a expressão dos mais fortes, não dos mais justos. A força, nesse sentido, é instrumento para realização do Direito.

Capítulo 3 – A coerência do ordenamento jurídico

Neste capítulo, o autor afirma que, além de uma unidade, o ordenamento jurídico deverá representar também um sistema. E sistema seria uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem.

Há três significados para sistema. A primeira delas entende que um dado ordenamento jurídico é sistema enquanto todas as suas normas jurídicas são deriváveis de alguns princípios gerais, considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema científico.

Um segundo significado de sistema é conferido por Savigny, e é utilizado para indicar um ordenamento da matéria, realizado através do processo indutivo, isto é, partindo do conteúdo das simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais, e classificações ou divisões da matéria inteira.

O terceiro significado de sistema é, aos olhos do autor, o mais interessante, pois estabelece a necessidade de, no ordenamento jurídico, inexistirem normas incompatíveis. Essa existência é denominada de antinomias. E o Direito não tolera antinomias.

A antinomia jurídica pode ser definida como aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade.

Há vários tipos de antinomias, porém, dividem-se basicamente em antinomias aparentes (aquelas passíveis de solução), e as antinomias reais (aquelas onde o intérprete é abandonado a si mesmo, ou pela falta de um critério, ou por conflito entre os critérios dados.

São três as regras fundamentais para a solução das antinomias: o critério cronológico, o hierárquico e o da especialidade.

O critério cronológico é aquele com base no qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a norma posterior.

O critério hierárquico é aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior.

Por fim, o critério da especialidade é aquele pelo qual, de duas normas incompatíveis, uma geral e uma especial, prevalece a segunda.

O autor conclui que nenhum dos três critérios pode resolver o problema da antinomia entre duas normas que são, simultaneamente, contemporâneas, do mesmo nível e ambas gerais.

A fim de resolver este problema, o autor não acredita na existência de um quarto critério, mas sugere a utilização do critério da forma, que consistiria em estabelecer uma graduação de prevalência entre as três formas da norma jurídica (imperativas, proibitivas e permissivas).

No que diz respeito à eventual ocorrência de conflito dos três critérios propostos (antinomia de segundo grau), o autor sugere que:

a)     no conflito entre os critérios hierárquico e cronológico, prevalecerá o primeiro;

b)    no conflito entre o critério de especialidade e o cronológico, prevalecerá o primeiro;

c)     no conflito entre o critério hierárquico e o da especialidade, não há resposta a priori, devendo o interprete avaliar a situação conforme as circunstâncias.

Capítulo 4 – A completude do ordenamento jurídico

De acordo com Bobbio, três são as características fundamentais do ordenamento jurídico. A primeira delas é a unidade, a segunda, a coerência e, por fim, temos a completude.

Por completude, entende-se a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular qualquer caso. Uma vez que a falta de uma norma se chama geralmente “lacuna”, a completude seria exatamente a falta de lacunas. Tecnicamente, diz-se que um ordenamento é completo quando jamais se verifica o caso de que a ele não se podem demonstrar pertencentes nem uma certa norma, nem a norma contraditória.

Dito de outra maneira, a incompletude consiste no fato de que o sistema não compreende nem a norma que proíbe um certo comportamento, nem a norma que o permite.

Salienta, ainda, o nexo existente entre a coerência e a completude está em que a coerência a coerência significa a exclusão de toda a situação na qual pertençam ao sistema ambas as normas que se contradizem, ao passo, que, a completude, significa a exclusão de toda a situação na qual não pertençam ao sistema nenhuma das duas normas que se contradizem.

Nesse diapasão, conclui que a coerência não é condição necessária para o ordenamento jurídico, podendo mesmo admitir-se ordenamentos em que haja a convivência de antinomias.

Entretanto, a completude afigura-se como condição necessária de um ordenamento tal qual o italiano, onde o juiz deve julgar cada caso mediante uma norma pertencente ao sistema.

Concluindo, para os ordenamentos que apresentam as duas regras abaixo, a completude constitui elemento necessário.

a)     o juiz é obrigado a julgar todas as controvérsias que se apresentarem a seu exame;

b)    deve julgá-las com base em uma norma pertencente ao sistema.

A existência de lacunas, segundo Bobbio, caracterizaria a incompletude do ordenamento. Mas por lacunas, deve-se entender a ausência de critérios válidos para decidir qual norma deve ser aplicada, e não meramente a falta de uma norma a ser aplicada.

A fim de alcançar a completude, Bobbio nos dá notícia de dois métodos, quais sejam, a hetero-integração e a auto-integração.

No primeiro método, a integração do ordenamento é operada através do:

a)     recurso a ordenamentos diversos; e

b)    recurso a fontes diversas daquela que é dominante (identificada, nos ordenamentos que temos sob os olhos, com a Lei)

Quanto ao segundo método, consiste na aplicação de dois procedimentos:

a)     a analogia

b)    os princípios gerais do Direito

Bobbio prefere o segundo método, segundo ele, mais pertinente ao ordenamento jurídico italiano.

Capítulo 5 – As relações entre os ordenamentos jurídicos

Bobbio afirma que, a fim de completar o estudo sobre o ordenamento jurídico, cabe analisá-lo do ponto de vista exterior, haja vista que, todas as considerações alinhavadas até então trataram do ponto de vista do interior do ordenamento jurídico.

As relações entre os ordenamentos podem ser distinguidas entre relações de coordenação e relações de subordinação (ou reciprocamente de supremacia).

Relacionamentos típicos de coordenação são aqueles que têm lugar entre Estados soberanos e dão origem àquele particular regime jurídico, próprio do relacionamento entre entes que estão no mesmo plano, que é o regime pactuário, ou seja, o regime no qual as regras de coexistência são o produto de uma autolimitação recíproca.

Os relacionamentos típicos de subordinação são, por outro lado, os verificados entre o ordenamento estatal e os ordenamentos sociais (associações, sindicatos, partidos, igrejas, etc.) que têm estatutos próprios, cuja validade deriva do reconhecimento do Estado.

Outro critério de classificação do relacionamento entre os ordenamentos é aquele que leva em conta a diferente extensão recíproca dos respectivos âmbitos de validade. São três tipos de relação:

a)     exclusão total

b)    inclusão total

c)     de exclusão parcial (ou inclusão parcial)

Exclusão total significa que os âmbitos de validade de dois ordenamentos são delimitados de maneira a não se sobreporem um ao outro em nenhuma das suas partes.

Inclusão total significa que um dos dois ordenamentos tem um âmbito de validade compreendido totalmente no do outro.

Exclusão parcial e inclusão parcial significa que dois ordenamentos têm uma parte em comum e uma parte não-comum.

Num terceiro ponto de vista, isto é, tomando como base a validade que um determinado ordenamento atribui às regras de outros ordenamentos com os quais entra em contato, os relacionamentos entre os ordenamentos podem ser de:

a)     indiferença;

b)    recusa;

c)     absorção;

A Modificação Unilateral do Contrato

A MODIFICAÇÃO UNILATERAL DO CONTRATO[1]

Dos três termos, (“modificação”, “unilateral” e “contrato”), o jurista pensa que conhece o terceiro.

O segundo, o adjetivo “unilateral”, não lhe é estranho, notadamente em matéria contratual. Mas ele sabe que a palavra é uma falsa amiga e que ela não tem o mesmo sentido quando se fala de ato jurídico unilateral e de contrato unilateral.

Pelo primeiro termo, “modificação”, o jurista terá antes uma percepção intuitiva. Não que o termo não figure na legislação francesa -encontrado em 14 artigos do Código Civil Francês -, mas porque a lei o utiliza sem o necessário rigor técnico.

A título de exemplificação, o artigo 61-4 do “Code Civil”, na seção relativa às “mudanças” (changements) dos nomes e dos prenomes, considera o termo “modificação” (modification) como sinônimo de “mudança” (changement), ao passo que, no artigo 1397 do “Code Civil”, agora relativo à “alteração” (mesmo vocábulo, changement) do regime matrimonial, o sentido da palavra “modificação” (modification) é distinto daquele representado por “alteração” (changement).

Isso posto, será possível dizer que o termo foi apreendido pela lei como um simples termo da linguagem comum e não como uma noção jurídica?

A questão não é de fácil solução. A resposta não pode prescindir de um trabalho prévio de definição. A esse título, falta-nos resolver duas questões: (a) o que é uma modificação? (b) O que é uma modificação unilateral? Somente depois poderemos colocar a questão maior: pode haver modificação unilateral do contrato?

(a) O que é uma modificação?

“Modificação” é uma palavra que participa das hipóteses de dupla aparência (ou ambigüidade), se bem descrita por Doyen Cornu[2]: trata-se de um termo que, tanto na linguagem comum (coloquial), como na jurídica, pode, num determinado contexto, possuir um ou mais sentidos. Sem dúvida, ninguém pode contestar que o termo pertence principalmente à linguagem comum, tendo sido ulteriormente emprestado à linguagem jurídica, diferentemente de outras palavras que percorrem o curso inverso.

Mas esse estado de dependência com a linguagem coloquial não quer dizer que o Direito não considere a palavra “modificação” como titular de um verdadeiro sentido jurídico Deve-se ao professor Ghozi a realização do primeiro ensaio sobre o tema, na sua admirável tese “a modificação da obrigação pela vontade das partes”[3].

Nós aplicaremos a sua definição de “modificação” no contrato e a definiremos como “a operação sobrevinda no curso da execução do contrato que, sem findá-lo, introduz uma alteração em quaisquer de seus elementos”.

(b) O que é uma modificação unilateral?

A proposição é suscetível de possuir dois sentidos fundamentalmente distintos.

Pode-se dizer que existirá modificação “unilateral” quando esta afetar o compromisso de somente uma das partes. O unilateralismo, aqui, concerne ao objeto da modificação. Neste sentido, unilateralismo opõe-se ao sinalagmatismo[4].

Pode-se também qualificar de “unilateral” a modificação que se  origina de somente uma das partes. O unilateralismo caracteriza, então, a gênese da modificação. “Unilateral” aqui se opõe a bilateral, plurilateral ou convencional.

É este segundo sentido que será privilegiado. Nós entenderemos, portanto, a “modificação unilateral” como a introdução de uma alteração em qualquer dos elementos do contrato, no curso de sua execução, cuja origem deve-se somente a um dos contratantes.

Nesse contexto é que se coloca a terceira questão: será ela possível? Poderá haver modificação unilateral do contrato?

A resposta é, a priori, negativa. Não se pode modificar unilateralmente um contrato.

E certamente poderá haver boas razões para fazê-lo. A vontade de modificar o contrato nasce do fato de que ele não corresponde mais às expectativas, às previsões de um ou do outro contratante, o que pode ser a conseqüência de um duplo fenômeno:

a)      o contrato não atende mais às necessidades a que era destinado suprir, como, por exemplo, em razão da transformação do contexto político, econômico, social ou monetário; ou

b)     o contrato atende adequadamente às necessidades a que era destinado, mas tais necessidades não representam mais as dos contratantes.

Entretanto, a justificativa oportunista não é juridicamente admitida. A Corte de Cassação já teve várias oportunidades de assim afirmar[5].

Esta solução é uma aplicação lógica do artigo 1134 do Code Civil: a força obrigatória do contrato fundamenta-se na sua intangibilidade. É em função do respeito à sua força obrigatória que o contrato deixa de atender às fantasias de uma das partes, que intenta modificar unilateralmente seu conteúdo.

Dito de outra maneira, a imutabilidade do contrato traz a segurança de que as suas modificações somente serão operadas de comum acordo.

Assim, a sua força obrigatória constitui-se num poderoso entrave à modificação unilateral.

Todavia, esse argumento não é suficiente, pois a força obrigatória não é um dogma infalível a habitar o espírito dos defensores da autonomia da vontade.

Nesse ponto, pode ser que falte remontar ao que fundamenta a força obrigatória do contrato: nas fontes dos princípios, encontram-se as considerações morais, o respeito à palavra empenhada, mas também outras, mais técnicas; notadamente a idéia de que o contrato é um ato de previsão, para retomar a belíssima expressão de Hauriou.

Nessa última perspectiva, a proibição de toda modificação unilateral é concebida facilmente, uma vez que, caso se autorize uma pessoa à modificar unilateralmente o contrato, trair-se-á, com isso, a previsão da outra.

A intenção, entretanto, não pode ser também peremptória, o que nos leva à questão: tal fundamento dado à força obrigatória dos contratos não permitirá, ao contrário, relativizar a negação do princípio de toda modificação unilateral do contrato?

A situação, com efeito, se apresenta assim: um contratante quer modificar o contrato porque ele não representa mais as suas expectativas originais; o outro contratante não pode se ver obrigado a aceitar uma tal modificação do contrato, porque ela trairá suas previsões.

Eis o impasse: caso não se permita a modificação, negar-se-á o fato de que o contrato constitui-se num ato de previsão por uma parte; mas, caso seja autorizada a modificação, negar-se-á, por outro lado, o fato de que o contrato constitui-se num ato de previsão pela outra parte.

Nesse contexto, o contrato parece em perigo, pois a sua própria essência está em discussão.

Dentro desta perspectiva, não é impossível de se conceber uma modificação unilateral: trata-se, na verdade, de uma escolha de política jurídica.

Pode-se estimar que é mais legítimo assegurar o respeito à essência do contrato em relação àquele que deseja a modificação do que relativamente àquele que a rejeita.

E será essa a saída do impasse? A ótica dos valores poderá demonstrar que o Direito não necessita ser sistematicamente hostil à modificação unilateral.

Convém constatar que o unilateralismo é susceptível de marcar diferentes etapas do processo de modificação e que, de acordo com o momento em que está situado, terá atritos mais ou menos fortes com a força obrigatória do contrato. O unilateralismo pode assim caracterizar tanto a iniciativa da modificação (I), como a decisão de modificar (II).

I – A INICIATIVA DE SOMENTE UMA DAS PARTES

O unilateralismo aqui é caracterizado pela iniciativa da modificação, daí advindo duas hipóteses:

a)     aquela em que o contratante que toma a iniciativa de uma modificação se dirige ao outro contratante.

Nessa hipótese, tecnicamente, o contratante manifesta uma oferta destinada a encontrar uma aceitação, a fim de que dela nasça uma convenção de modificação de um acordo precedente.

O unilateralismo, nesse caso, parece não existir, pois haverá então uma convenção de modificação.

b)      A segunda hipótese é aquela em que o contratante que toma a iniciativa de uma modificação não se dirige ao outro contratante, mas a um terceiro (o juiz ou uma outra autoridade).

A situação parece ainda mais confusa: o unilateralismo caracteriza-se melhor na iniciativa, mas há que se notar que a decisão de modificação não é, no caso, convencional.

Todavia, ela também não depende do contratante que tomou a iniciativa, seguindo-se a conclusão de que ela não é mais uma “oferta de modificação”, mas sim uma “demanda de modificação”.

No entanto, resta lembrar que a “iniciativa de apenas uma das partes”, quanto ao processo de modificação do contrato, somente tem sentido na hipótese de esse processo não ser realizado por meio de uma decisão puramente convencional. Caso contrário, ela será então uma modificação falsamente unilateral.

Somente devem ser consideradas as hipóteses em que o unilateralismo – que caracteriza a iniciativa -, afete diretamente o processo de modificação do contrato, para que ele não seja perfeitamente convencional.

Isso pode existir na presença de uma “oferta de modificação” (1.1) ou de uma “demanda de modificação” (1.2).

1.1) A OFERTA DE MODIFICAÇÃO

A situação parece clara: a iniciativa aqui é unilateral, mas a decisão é convencional.

Existe, a priori, pouco a dizer sobre essa figura jurídica, que se encontra em perfeita harmonia com o principio da força obrigatória do contrato.

Entretanto, pode-se perguntar se, às vezes, o mesmo unilateralismo que qualifica a iniciativa não se descaracteriza na decisão. Os dados do problema são, então, modificados.

Isso pode ser pesquisado nos dois contextos: um, normal, onde se está na presença de uma oferta espontânea de modificação; outro, aparentemente mais original, onde o contratante é forçado a propor ao outro uma modificação.

1.1.1 – A oferta espontânea de modificação

A oferta espontânea de modificação, susceptível de chegar à uma modificação convencional, é uma situação que não apresenta qualquer caráter extraordinário: é a aplicação do princípio da liberdade contratual.

Nesse contexto, não se pode desprezar as contribuições dos demais ramos do direito, especificamente o direito do trabalho, que apresenta, sob este ponto, um caráter atípico[6].

Assim, quando há iniciativa de modificar o contrato de trabalho, existe, aparentemente, iniciativa unilateral e decisão convencional.

O caráter convencional da modificação é reforçado pela jurisprudência, que tem exigido, cada vez mais, provas robustas para admitir a aceitação da modificação pelo assalariado.

No importante julgado Raquin, vencido pela Câmara Social de 8 de outubro de 1987, a Corte de Cassação afirmou que a aceitação de uma modificação substancial do contrato de trabalho não poderia resultar apenas do fato de que o assalariado já tinha aceitado o trabalho, mas era necessária a existência de um acordo expresso. O caráter convencional da decisão foi então reforçado[7].

Há que se distinguir, entretanto, a modificação substancial da não substancial.

Quando o empregador toma a iniciativa unilateral de oferecer ao assalariado uma modificação não substancial de seu contrato de trabalho, admite-se que o assalariado seja obrigado a aceitá-la[8]. Se o assalariado recusa-se a prosseguir a execução de um contrato em que não foi promovida nenhuma alteração substancial, restará configurada, pois, uma falta a suas obrigações contratuais[9].

A aceitação do assalariado apresenta, portanto, um caráter obrigatório. Essa situação é justificada pelo poder de direção e de organização do trabalho – ambos pertencentes ao empregador -, que podem levá-lo a impor as mudanças nas condições de execução do contrato de trabalho.

Nesse caso, formalmente, somente a iniciativa é unilateral, pois a decisão é convencional; mas, substancialmente, a decisão é afetada por uma grande parte de unilateralismo, devido ao caráter obrigatório da aceitação.

Esse mesmo raciocínio poderá ser utilizado no caso de modificação substancial do contrato de trabalho, muito embora numa escala menor.

Com efeito, nesse caso existe uma pressão indireta feita sobre o consentimento do assalariado: ele aceita, senão o empregador pode iniciar o procedimento de dispensa. O assalariado sofre da alternativa que consiste em (a) admitir a modificação ou (b) aceitar a extinção do vínculo contratual.

Na hipótese da modificação substancial do contrato de trabalho em que a iniciativa é perfeitamente unilateral, existe, sem dúvida, um menor grau de unilateralismo na decisão.

O exemplo do contrato de trabalho ilustra perfeitamente a hipótese de uma oferta espontânea de modificação que caracteriza a iniciativa de apenas uma das partes quanto à modificação do vínculo contratual.

Demonstra-se também que, no estágio da decisão, pode-se ter diferentes graus de unilateralismo, onde uma decisão pode ser mais ou menos convencional.

1.1.2 – A oferta obrigatória de modificação.

A hipótese parece romper com o princípio da liberdade contratual. Afinal de contas, como conceber uma situação em que um dos contratantes, no curso de execução do contrato, se vê obrigado a propor ao outro uma modificação do conteúdo contratual?

–        Não se trata de questão relativa às cláusulas de renegociação ou de hardship. Essas cláusulas permitem, com efeito, a qualquer uma das partes demandar uma revisão do contrato se houver uma alteração significativa das condições iniciais da contratação que torne impossível ou extremamente gravoso para uma das partes a sua execução. Essas cláusulas não têm por objeto obrigar um dos contratantes a oferecer ao outro a modificação do contrato; elas fazem simplesmente nascer para um contratante o direito de exigir a discussão e impor aos contratantes a negociação de boa-fé.

–        Em compensação, há certas decisões jurisprudenciais que têm reconhecido, sob o fundamento da boa-fé, a obrigação de um contratante oferecer ao outro, em certas circunstâncias, a modificação do contrato. Os julgados proferidos pela câmara social, a 25 de fevereiro de 1992 e pela câmara comercial, a 3 de novembro de 1992 são interpretados na doutrina como reconhecedores da existência de uma verdadeira obrigação de adaptação do contrato oneroso para um dos contratantes, que, sob o fundamento da boa-fé, se vê obrigado a oferecer ao outro uma modificação contratual em caso de imprevisão.

A situação é, aqui, estritamente inversa àquela vista anteriormente: a dose de unilateralismo encontrada na decisão havia sido abordada sob a ótica do proponente; doravante, ela será vista do ponto de vista do aceitante.

No entanto, todas essas situações são reveladoras de um unilateralismo perfeito relativamente à iniciativa da modificação; e imperfeito, parcial, quanto à decisão de modificação.

Trata-se de unilateralismo existente parcialmente na etapa da decisão, representando o fruto de apenas uma vontade livre: às vezes, do proponente, outras vezes, do aceitante.

1.2) A DEMANDA DE MODIFICAÇÃO

Doravante, não se tratará mais da oferta, mas da demanda de modificação. A iniciativa de um contratante não é mais endereçada ao outro contratante, mas a um terceiro. Esse terceiro é normalmente um juiz, mas poderá ser também uma autoridade não judiciária.

1.2.1 –  A demanda de modificação endereçada ao juiz

A questão que aqui se coloca é aquela que diz respeito à influência da força obrigatória do contrato sobre o ofício do juiz. Isto porque, em princípio, a lei contratual deve também, logicamente, se impor ao juiz.

Toda e qualquer modificação do contrato somente pode ocorrer com o consentimento mútuo das partes. Portanto o juiz deve ser impulsionado a rever o contrato, ajustá-lo ou suprimi-lo de acordo com a vontade das partes.

Esclareça-se: a força obrigatória é um efeito próprio do contrato em virtude de lei. O que a lei fez, não se pode, em princípio, desfazer. A revisão do contrato pelo juiz é então aceitável se for legalmente autorizada.

Resta então a questão de saber se, no silêncio da lei, o juiz, sob a iniciativa de apenas uma das partes, pode modificar o contrato.

A questão foi e continua a ser discutida sob a ótica da imprevisão.

Nesse contexto, coloca-se a seguinte indagação: pode um juiz autorizar a modificação do contrato sob a demanda de apenas uma das partes e contra a vontade da outra, caso as circunstâncias econômicas que existirem no momento de sua conclusão estejam totalmente alteradas e que assim, esteja prejudicado o equilíbrio das prestações?

A doutrina divide-se e a jurisprudência francesa parece estagnada desde o julgado “Canal de Craponne”, do dia 6 de março de 1876.

E esse imobilismo parece que não irá se desfazer. É admirável que a jurisprudência francesa contemporânea não trabalhe em favor do equilíbrio contratual na etapa da execução do contrato.

Sem dúvida, a jurisprudência francesa jamais admitiu expressamente, de maneira geral, a teoria da imprevisão.

Mas ela não tem trabalhado no mesmo sentido, atingindo os mesmos fins por outros meios? A jurisprudência acima citada – a de obrigar o contratante a oferecer ao outro a adaptação do contrato -, não é obra dos juizes que impuseram às partes o que eles mesmos não fizeram? E amanhã, o recurso à teoria da imprevisão não será inútil para uma aplicação extensiva da teoria da causa?

Pode-se ver num recente julgado proferido pela Corte de Cassação, em 17 janeiro de 1995[10], a vontade da jurisdição suprema em consagrar as teses de Capitant e aprovar o desaparecimento da causa quando da execução do contrato.

Nesse julgado, a Corte de Cassação teve a grande preocupação de frisar que ela aprovou o desaparecimento parcial da causa para realizar a da imprevisão, sem, entretanto, assim dizer expressamente.

É possível ver nessa modificação não convencional do contrato um exemplo de que ele é ato de previsão; e que o Direito, na presença de um contrato que, de todos os modos, não está mais a respeitar as previsões dos dois contratantes, escolhe respeitar as previsões daquele que toma a iniciativa da modificação.

Desde que a autoridade judiciária é demandada, o unilateralismo não mais caracteriza de modo perfeito a iniciativa de modificação; assim também se dá, caso o contratante ativo dirija-se à uma autoridade não judiciária.

1.2.2 – A demanda de modificação dirigida à uma autoridade não judiciária

Existe mais bela manifestação de publicização do direito privado do que o tratamento pela comissão de  “surendettement”, dos “surendettement” dos particulares? À demanda do devedor, a referida comissão irá buscar a conciliação das partes, tendo sempre em vista a elaboração de um plano convencional de solução.

A decisão de modificação poderá afetar, por exemplo, o montante da obrigação contratual, ainda que a iniciativa do contratante não esteja endereçada ao credor.

Mas é sobretudo na ausência do acordo que a missão da comissão é extraordinária, uma vez que ela está habilitada a recomendar as modificações do conteúdo contratual.

Com efeito, a comissão compartilha a decisão de modificação com o juiz, chamado a conferir força executória às medidas que a recomendam.

Constata-se, assim, que o unilateralismo não caracteriza somente a oferta de modificação, dirigida ao contratante, mas pode também caracterizar a demanda de modificação, endereçada ao juiz ou a certas autoridades.

Uma diferença fundamental distingue, entretanto, as duas situações: no caso da demanda de modificação, a iniciativa caracteriza-se por um unilateralismo perfeito, ao passo que a decisão é desprovida do caráter unilateral, ao menos no sentido em que nós o entendemos, considerando relevante a vontade de um dos contratantes.

Ao contrário, no caso da oferta de modificação, a iniciativa se caracteriza também por um unilateralismo perfeito, mas esse unilateralismo pode diminuir na fase da decisão de modificação, na qual pode-se achar uma certa dose de unilateralismo.

II – A DECISÃO DE APENAS UMA DAS PARTES

Trata-se de conceber e pesquisar as hipóteses nas quais a modificação é o fruto da decisão de apenas uma das partes, hipóteses nas quais, diferentemente do visto na parte anterior, o unilateralismo é perfeito na etapa da decisão.

Se assim é, o estrangulamento do princípio da força obrigatória parece particularmente grave, a menos que se admita que o seu fundamento – a idéia de que o contrato é ato de previsão -, pode também legitimar a modificação unilateral então proibida.

De maneira igual, pode-se pensar que é muito mais cômodo de admitir uma modificação unilateral nos dias de hoje do que antigamente, desde que se tenha uma concepção mais objetiva do contrato, que termina por ver o bem sobre o vínculo.

Ora, essa concepção objetiva do contrato não se acomoda mais facilmente do que a da modificação unilateral?

Sem dúvida, mas há que se esclarecer que certas modificações decididas unilateralmente são admitidas porque o contrato é um bem; não obstante, outras são mais bem admitidas por de uma visão subjetiva do contrato, porque ele incide mais sobre os contratantes do que sobre a entidade contratual.

Assim, a decisão de apenas uma das partes é, às vezes, admitida, porque o contrato é um bem, e, às vezes, rechaçada, porque o contrato é um vínculo.

2.1) POR QUE O CONTRATO É UM BEM

Uma visão objetiva do contrato pode justificar, em certas circunstâncias, a decisão de modificação unilateral do contrato (2.1.1). Tal aproximação não tem, entretanto, justificado, aos olhos da Corte de Cassação, certas modificações unilaterais do contrato (2.1.2).

2.1.1 – A admissão da decisão de apenas uma das partes sob o fundamento da concepção objetiva do contrato.

Desde Gaudemet, desenvolveu-se uma concepção objetiva do contrato.  Durand, em 1960, havia concebido o contrato como um bem da empresa. Um contrato a serviço da empresa? O direito do processo coletivo francês assim confirma. Então desde essa época não se pode justificar que o empresário promova uma adaptação unilateral do contrato para ajustá-lo às necessidades da empresa?

Foi essa idéia que presidiu a elaboração da lei de 12 de maio de 1965, modificando o decreto de 30 de setembro de 1953 sobre os arrendamentos mercantis, cujo texto foi redigido com o objetivo de facilitar a adaptação do comércio às diversas formas da concorrência e às demandas cambiantes da clientela[11].

O artigo 34 do decreto autorizava o arrendatário a associar a sua atividade prévia a outras atividades conexas ou complementares e o arrendatário pode impor essa modificação ao arrendante, que pode apenas contestar o caráter conexo ou complementar da atividade.

Entendendo o contrato como um bem, pode-se conceber que a lei admita uma decisão unilateral de modificação. Numa outra circunstância, entretanto, a jurisprudência francesa não a aceita.

2.1.2 – A recusa da decisão de apenas uma das partes sob o fundamento da concepção objetiva do contrato.

Um importante segmento da doutrina fundamenta-se na concepção objetiva do contrato, chegando mesmo a enxergar um valor patrimonial numa certa autonomia em relação àqueles que o concluíram.

Essa concepção do contrato gera conseqüências quanto ao regime dessa cessão. Com efeito, sob este ponto de vista, o consentimento do cessionário será, em princípio, indiferente no que concerne à realização de uma tal cessão. Vem ao suporte dessa tese o fato de que, quando da conclusão do contrato, o consentimento do cessionário fundamenta-se mais nos seus elementos objetivos do que na pessoa de seu co-contratante.

Assim, pode-se ter modificação do contrato pela substituição de um dos contratantes, por meio da decisão de apenas um dos contratantes iniciais.

Parece, entretanto, que essa tese não tem sido acolhida pela Corte de Cassação, que, no julgado de 6 de maio de 1997, exigiu o consentimento do cessionário à substituição de seu contratante, para que a cessão pudesse ser operada.

Se o contrato for visto como um bem, é possível legitimar-se a decisão de modificação por apenas uma das partes. E pode-se chegar a uma mesma conclusão desde que tente-se constatar como o contrato, visto desta vez como um vínculo, pode ou poderá autorizar certas modificações unilaterais.

2.2 – POR QUE O CONTRATO É UM VÍNCULO

O contrato é um vínculo na medida em que se aceita a teoria de que a visão objetiva do contrato não suprime totalmente a dimensão subjetiva da relação jurídica.

Nessa perspectiva, a decisão de modificação unilateral é de lege lata; e poderá ser, de lege ferenda, admitida algumas vezes.

A visão subjetiva do contrato permite conceber, primeiramente, a obrigação de boa-fé que recai sob os contratantes (1) e, em seguida, certas justificativas que daremos ao princípio da força obrigatória do contrato (2).

2.2.1 – Boa-fé e decisão unilateral de modificação do contrato

O princípio da boa-fé admite o raciocínio de que a lei contratual não é uma lei implacável para as partes. A boa-fé representa, antes de tudo, a lealdade do devedor: ele deve executar fielmente suas obrigações.

Ora, a jurisprudência tem admitido que, se os esforços empreendidos pelo devedor permitem-lhe atingir sua meta estabelecida no contrato, nada poderá ser reclamado contra ele, mesmo que as prestações efetuadas não estejam exatamente conforme as previsões contratuais.

De qualquer sorte, seja porque ele estava de boa-fé, seja porque a meta estipulada no contrato também foi atendida, a jurisprudência tolera que o devedor deixe de respeitar rigidamente as estipulações contratuais, permitindo, portanto, que as modifique, mas sob os aspectos necessariamente menores, senão a meta final do contrato não seria mais atendida.

2.2. 2 – Força obrigatória e decisão unilateral de modificação.

Quanto às justificativas que alguns conferem à força obrigatória do contrato, é necessário dizer que, caso fossem admitidas no direito francês, elas poderiam abrir um campo muito vasto à modificação unilateral.

Fala-se em uma doutrina de origem Anglo-americana que fundamenta a força obrigatória do contrato na idéia de atender às expectativas dos contratantes.

Nesse ponto de vista, o que fundamentará a força obrigatória do contrato será o atendimento das expectativas do credor, que não deve ser decepcionado. Em conseqüência, o devedor não será obrigado a satisfazer o credor além do limite das suas expectativas originais, ou do limite que essas expectativas poderiam ser razoavelmente atendidas.

Pode-se tirar certas conclusões dessa doutrina, como, por exemplo,

a)    os interesses lesionados que seriam devidos em caso de inexecução pelo devedor deverão se calcar não sob o valor da prestação descumprida, mas sob o valor inferior, do atendimento razoável.

b)    Poder-se-á, também, nessa mesma lógica, concluir que o devedor poderá executar não a obrigação literal prevista no contrato, mas aquela que razoavelmente atenda às expectativas do credor, o que equivale a reconhecer ao devedor uma possibilidade de modificar o contrato para adaptá-lo ao atendimento razoável do credor.

Essa concepção não pode, entretanto, ser acolhida sem reserva, ainda que ela possa influenciar certos elementos de nosso direito.

Ora, seria admissível que o devedor pudesse julgar o que atenderia razoavelmente seu credor? Ou será que ele não poderia jamais ser reconhecido como julgador nesses casos?  Somente nessa última hipótese a teoria seria impulsionada a fundamentar universalmente a “força obrigatória”.

Em conclusão, pode-se resumir:

O direito francês conhece, primeiramente, hipóteses de perfeito unilateralismo quanto à iniciativa da modificação. Trata-se, entretanto, de unilateralismo que desaparece na etapa da decisão de modificar o contrato, seja porque a decisão é puramente convencional, seja porque ela é judiciária ou emana de uma autoridade administrativa (a vontade do juiz ou de outra autoridade que substitua a do outro contratante). Esses casos não são os reais de modificação unilateral do contrato.

O direito francês conhece, em segundo lugar, as hipóteses de perfeito unilateralismo quanto à iniciativa da modificação. Esse unilateralismo caracteriza a decisão, não obstante de forma imperfeita. Essa é a hipótese da modificação do contrato de trabalho. Esse é também o caso da jurisprudência que impõe, sob o fundamento da boa-fé, a um contratante a obrigação de oferecer ao outro a modificação do contrato. Esses são os casos de modificação unilateral do contrato, mas os casos imperfeitos.

O direito francês conhece, em terceiro lugar, as hipóteses de perfeito unilateralismo quanto à iniciativa da modificação, que se caracteriza também na decisão de modificação de forma perfeita: esse é o caso da desespecialização parcial em matéria de arrendamentos mercantis. Esse é o caso também do devedor de boa-fé, que não cumpre os pormenores contratuais mas atende o fim do contrato. Eles são os casos perfeitos de modificação do contrato.

Se é permitido um julgamento de ordem quantitativa quanto às hipóteses de modificação unilateral do contrato, em cujo bojo possam conviver os casos imperfeitos juntamente com aqueles perfeitos, constata-se que as hipóteses de modificação unilateral do contrato são  ainda muito raras no Direito Francês.


[1] Resenha do artigo “La modification unilaterále du contrat”, de autoria de Hervé LÉCUYER, professor da Universidade de Paris Val-de-Marne (Paris XII).

[2] G.Cornu. Liguistique juridique, Montchrestien, spéc. P. 68 et s.,  para o fenômeno de dupla aparência.

[3] A. Ghozi, La modification de l´obligation par la volonté des parties, préf. D. Talon, L.G.D.J., 1980.

[4] É neste sentido que M. Ghozi trata, em sua tese, da modificação unilateral. V. th. Préc. P. 83 et s.

[5] Par ex. Cass. 1er civ., 29 janvier 1980: Bull. Civ. I, nº 37; Cass. Ass. Plén. 3 mai 1956: JCP 1956, II, 9345, obs. J.G.L.

[6] V. J. Savatier, “Modification unilatérale du contrat de travail et respect des engagements contractuels”,D. Soc. 1988, p. 135.

[7] O legislador francês, então, procurou contrariar esta jurisprudência: v. C. travail, art. L 321-1-2, issu de la loi nº 93-1313 du 20 décembre 1993.

[8] Droit de l´emploi, op. Cit. nº 1564.

[9] G. Lyon-Caen, J. Pélissier, A. Supiot, Droit du travail, Dalloz, 18e éd., nº 362.

[10] Cass. 1re civ. 17 janvier 1995: Bull. Civ. I, nº 29; JCP 1995, 1, 3843, nº 4, note Fabre-Magnan

[11] Ripert et Roblot, Traité de droit commercial, par M. Germain, LGDJ, 16e ed., nº 398.

Direitos Autorais de Execução Pública Musical

DIREITOS AUTORAIS DE EXECUÇÃO PÚBLICA MUSICAL


Sumário: 1- Introdução. 2- Direitos Autorais. 2.1- Conceito. 2.2- Fundamento Constitucional. 2.3- Interpretação (concretização) do inciso XXVII e XXVIII, do art. 5o, da CF/88. 2.4- Fundamento Infraconstitucional. 3- Direito autoral de execução pública musical. 4- A legitimidade do ECAD. 5- Conclusão. 6- Bibliografia.

1 – Introdução

O análise do tema proposto é hoje questão de ordem para os estudiosos da propriedade intelectual, quiçá mesmo o mais discutido dentre todos aqueles que habitam a seara específica do direito autoral, pois compreende a análise de todo o sistema de representatividade que envolve quatro personalidades jurídicas distintas, a saber, o titular de direitos de autor e conexos, as associações de gestão coletiva dos direitos autorais, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – ECAD e, por fim, o usuário da obra musical.

Analisar do ponto de vista jurídico a legalidade desse sistema de representatividade, bem como a juridicidade da mecânica de arrecadação e distribuição[1] é, na verdade, contribuir para a solidificação da sistemática hoje vigente, devidamente posta pela Constituição Federal e pela Lei de Direitos Autorais, que tem passado por uma profunda crise de legitimidade perante a sociedade brasileira.

Com efeito, não são raras as contestações judiciais à mecânica da gestão coletiva, mormente no que diz respeito ao papel desempenhado pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, criado pela Lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973 e mantido pelo novo diploma autoral de 1998.

Trata-se de uma sociedade civil importante no cenário da economia nacional, administradora de grandes e importantes interesses, já que a Lei de Regência Autoral[2] conferiu-lhe a exclusividade de arrecadar e distribuir no território brasileiro toda a importância econômica a título de direitos autorais de execução pública musical.

Somente no ano de 2001, o ECAD arrecadou cerca de R$ 150.000.000 (cento e cinqüenta milhões de reais)[3] apenas na área da execução pública musical, sendo que, as previsões indicam no sentido de aumentos significativos na arrecadação, aproximando o Brasil de patamares internacionais.

Não obstante as previsões otimistas, o Brasil ainda engatinha na área da gestão coletiva se comparado com nações desenvolvidas como os Estados Unidos, por exemplo, cuja arrecadação no ano de 2000 somou a considerável quantia de US$ 1.000.000.000,00 (hum bilhão de dólares)[4].

A realidade é que a mecânica da gestão coletiva de direitos autorais no país carece de estudos científicos autorizados, que sustentem juridicamente o sistema vigente.

Analisar, pois, os institutos jurídicos que sustentam a organização dos direitos autorais de execução pública musical no Brasil é contribuir para a solidificação não só do direito autoral no país, mas, em última instância, da própria criação intelectual aplicada à música, sem dúvida alguma, um dos maiores patrimônios de nossa multivariada cultura nacional, fator de suma relevância para o desenvolvimento social da nação.

2 – Direitos Autorais

2.1 – Conceito.

Espécie do gênero da propriedade intelectual, o direito autoral pode ser conceituado como um “domínio tendo por objeto um bem intelectual e que devido à dupla natureza pessoal e patrimonial, abrange no seu conteúdo faculdades de ordem pessoal e faculdades de ordem patrimonial”[5].

José de Oliveira Ascenção adverte que a expressão “direito autoral” contém tanto os direitos de autor como os direitos conexos, querendo, portanto, explicitar que as expressões “direito autoral” e “direitos de autor” não são sinônimas, mas a última compõe a primeira, ao lado dos chamados direitos “vizinhos” ou conexos aos de autor[6].

Direito de autor, seria, no seu entendimento, o ramo da ordem jurídica que disciplina a atribuição de direitos relativos a obras literárias e artísticas, enquanto que o direito conexo, tecnicamente, seria aquele pertinente aos artistas, intérpretes, músicos executantes, produtores de fonogramas e das entidades de radioteledifusão[7].

A nova lei de direitos autorais[8] explicita em seu artigo primeiro que “esta lei regula os direitos autorais, entendendo-se sob esta denominação os direitos de autor e os que lhes são conexos.”

Quanto aos direitos de autor, a novel legislação segue os mesmos passos da legislação revogada[9] ao indicar a sua natureza jurídica “sui generis”: compõe-se de direitos de natureza moral e patrimonial[10].

Dos direitos conexos, cuidou o artigo 89, afirmando que são aqueles que pertencem aos artistas intérpretes ou executantes, aos produtores fonográficos e às empresas de radiodifusão[11].

Direito autoral é, portanto, o conjunto de faculdades e prerrogativas que pertencem aos criadores das obras intelectuais protegidas pela Lei de Direitos Autorais[12], bem como aos artistas intérpretes ou executantes, produtores fonográficos e empresas de radiodifusão.

Como afirmado, o direito autoral é considerado “sui generis” pela doutrina porque é composto por uma vertente moral e outra patrimonial, sendo certo que, como direito subjetivo patrimonial[13], é tecnicamente um direito de propriedade – intelectual, especificamente -, portanto, trata-se de direito real, a encontrar guarida no art. 1.225, I, do Novo Diploma Civil[14].

Já quanto ao seu aspecto moral, a doutrina o considera como parte integrante do rol dos direitos da personalidade, caracterizados por serem inerentes ao indivíduo, como pressuposto da sua própria condição humana[15].

2.2 – Fundamento Constitucional

A nova ordem jurídica instaurada pela promulgação da Constituição Federal de 1988 promoveu a chamada constitucionalização do direito civil[16], para não dizer do próprio direito privado[17], ocasionando profundas alterações paradigmáticas no que diz respeito ao seu processo interpretativo.

De fato, a crise axiológica em que se encontrava o Diploma Civil de 1916 – fruto de ideais liberais burgueses do final do século XVIII[18] -, foi devidamente sepultada pelos novos valores trazidos pela Carta de 1988.

Ao mesmo tempo em que a dignidade da pessoa humana foi alçada ao patamar da intocabilidade, o patrimônio rebaixou-se ao posto que de há muito já lhe cabia, pelo que o texto constitucional privilegiou expressamente as relações existenciais em detrimento daquelas de caráter patrimonial.

Perlingieri afirma que compete ao direito positivo – incluído aí a Constituição -, não apenas a regulamentação da vida em sociedade, mas, sobretudo, cabe-lhe a função de promover o adequado desenvolvimento dessa sociedade à luz dos valores consubstanciados em seu texto[19].

Trata-se da verdadeira expressão do Novo Direito Constitucional[20], nitidamente preocupado com as relações envolvendo o Estado e os Indivíduos, principalmente no que diz respeito à efetividade dos direitos fundamentais[21].

Não é por outro motivo que, após a promulgação da nossa Constituição de 1988, inúmeras legislações especiais foram editadas[22], com o claro propósito de funcionalizar as situações jurídicas patrimoniais àquelas não-patrimoniais.

Analisando o processo de constitucionalização do direito civil, Gustavo Tepedino enumera três conquistas significativas[23] para o Direito Privado contemporâneo, a saber:

a)      descobriu-se o significado relativo e histórico dos conceitos jurídicos, antes vistos como neutros e absolutos;

b)      Superou-se a rígida dicotomia entre o direito público e o direito privado;

c)      A absorção definitiva, pelo Texto Constitucional, dos valores que presidem a iniciativa econômica privada, a família, a propriedade e demais institutos do direito civil, demonstrando que tais matérias não se circunscrevem mais apenas ao reduto privatístico, inserindo-se definitivamente na ordem pública constitucional.

Como conseqüência direta dessas conquistas, pode-se apontar a inauguração de um novo processo interpretativo para as normas integrantes do chamado novo direito civil, ou direito civil contemporâneo, cuja fundamentação primeira habita o seguro espaço jurídico abrangido pela Constituição da República.

Sendo assim, toda norma infraconstitucional que se pretenda válida e eficaz deverá ser analisada à luz da normativa constitucional, seja pelo devido respeito hierárquico[24], seja porque toda a tábua axiológica do nosso ordenamento jurídico encontra guarida especial na Carta Republicana de 1988, donde ser ela fonte principiológica e norte interpretativo precípuo do ordenamento jurídico brasileiro.

Quer-se, com isso, dizer que todo o direito civil, assim como os demais ramos do direito, deverão ser relidos à luz dos princípios positivados no texto da Constituição de 1988[25], principalmente aqueles considerados como os direitos fundamentais do cidadão[26], uma vez que, positivados e insertos definitivamente no corpo constitucional, possuem plena eficácia normativa, irradiando, portanto, sua eficácia vinculante tanto aos demais dispositivos infraconstitucionais, como também, em sua ausência, regulamentando de forma imediata as relações jurídicas que se lhe subsumirem[27].

A teoria material da constituição[28], vigente no novo direito constitucional, traz consigo a Nova Hermenêutica[29], a compreender a Constituição como direito[30], e não como meramente lei, libertando-a, pois, do positivismo legalista e de seus silogismos e dedutivismos que embargavam a sua eficácia normativa e “a confinavam, pelo seu teor principial, ao espaço da programaticidade destituída de juridicidade.”[31]

Conferindo-se-lhe, então, eficácia normativa – porque compreendida como direito e não mais como lei -, o novo Direito Constitucional e a Nova Hermenêutica dão o teor prático da aplicação das normas constitucionais, salientando que na Velha Hermenêutica interpretava-se a lei (a Constituição), enquanto que na Nova Hermenêutica as normas constitucionais são concretizadas, que significa interpretar com acréscimo, com criatividade[32].

Assim, qualquer discussão que se pretenda travar acerca da Lei de Direitos Autorais deverá, antes, estabelecer o sentido e o alcance de sua fundamentação constitucional, consubstanciada nos incisos XXVII e XXVIII, do art. 5o, da Constituição Federal de 1988.

2.3- Interpretação (concretização) do inciso XXVII e XXVIII, do art. 5o, da CF/88

O primeiro dita que “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”[33], enquanto que o segundo afirma que “são assegurados nos termos da lei (a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades esportivas e (b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas.”[34]

Ambos os incisos foram regulamentados pela Lei de Direitos Autorais de n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

O inciso XXVII, do art. 5o, da CF/88 é a estrutura, a espinha dorsal sobre a qual repousa toda a sistemática do direito autoral, substancialmente fundamentado no que se pode chamar de “princípio da exclusividade”, que atribui ao autor, exclusivamente, toda e qualquer utilização da obra intelectual de sua autoria.

Apenas nas hipóteses de domínio público[35] e naquelas previstas no art. 46, da LDA, é facultada a utilização da obra intelectual sem a necessidade da prévia e expressa autorização de seu titular, quebrando, portanto, o princípio da exclusividade, também positivado no art. 29, da Lei de Regência[36].

Para as demais utilizações, todas, inclusive a execução pública musical, é necessária a prévia e expressa anuência do titular da obra intelectual, sob pena de incorrer na prática de ato ilícito, cuja responsabilidade recai tanto na esfera cível quanto na penal.

Nota-se um evidente caráter patrimonial neste dispositivo, autorizando à conclusão de que está-se a tratar, portanto, unicamente da vertente patrimonial do direito autoral, sendo certo que a sua faceta moral já integra a classe dos direitos subjetivos extra-patrimoniais, dos quais os direitos da personalidade são a sua expoência máxima.

O inciso XXVIII, consagra, precipuamente, o direito de fiscalização dos titulares de direitos autorais ou conexos sobre o aproveitamento econômico das obras de sua titularidade, individualmente ou coletivamente, através das entidades associativas.

De acordo com a Nova Hermenêutica, ou pós-positivismo material, há que se concretizar os direitos fundamentais, significando isso que não basta interpretá-los simplesmente, mas, fazê-lo com acréscimo, por modo a conferir-lhe um grau máximo de efetividade[37].

Isoladamente, poderia-se, portanto, considerar como absoluto o princípio da exclusividade, sugerindo até mesmo uma inconstitucionalidade potencial do art. 46, da LDA, pois que está a trazer uma série de utilizações da obra intelectual que, segundo ele, não constituem ofensa ao direito autoral.

Não obstante, a concretização de um direito fundamental não pode implicar em supressão ou mesmo desconsideração de outro preceito constitucional fundamental.

Assim, quando o art. 5o da Constituição Federal garante, em seu inciso XXII, o direito de propriedade, imediatamente, em seu inciso XXIII, atribui-lhe uma função social, querendo, com tanto, afirmar que o direito de propriedade somente será garantido se for cumprida sua função social.

Ora, o direito autoral é, em última análise, um direito de propriedade. Intelectual, diga-se, mas de propriedade. Assim, como todo direito de propriedade, há que cumprir sua função social. O art. 46, da LDA é expressão da função social do direito de propriedade intelectual e encontra, pois, fundamento no inciso XXIII, do art. 5o da Constituição da República.

Dito de outra maneira, o princípio da exclusividade do direito autoral, garantido pelo inciso XXVII do art. 5o, da CF/88 deve ser compatibilizado com o seu respectivo inciso XXIII, a estabelecer a função social da propriedade. Essa compatibilização será realizada através do método de interpretação (ou concretização) denominado de proporcionalidade ou da ponderação.

Com efeito, o conflito entre princípios garantidos sobretudo nos direitos fundamentais, hão de ser dirimidos por meio da ponderação, que é, em última análise, uma estimativa de valores, donde jamais um deles será considerado inválido e, conseqüentemente, expulso do ordenamento jurídico[38].

Dito de outra maneira, a solução de antinomias no âmbito constitucional difere-se sobremaneira daquela realizada na seara infraconstitucional. Não existem normas inconstitucionais na Constituição Federal[39], portanto, dirimir conflitos porventura existentes entre elas é, na verdade, compatibilizar os seus sentidos, por modo a conferir a cada qual um alcance que não anule a validade da outra[40]. Trata-se, em última análise de respeitar o princípio da unidade da Constituição, propugnado por Canotilho[41].

Em primeiro lugar, pode-se dizer que a chamada concretização dos direitos fundamentais somente ocorrerá diante de sua aplicação no caso concreto. Por isso se denomina “concretização”[42], propriamente. Vejamos então uma situação hipotética: a potencial inconstitucionalidade do artigo 46, da LDA. Dir-se-ia que este dispositivo autoral viola o princípio da exclusividade do art. 5o, XXVII, da CF/88. Não obstante, justifica-se a existência do art. 46, da LDA pelo fundamento do art. 5o, XXIII, eis que se trata de uma forma legal da propriedade autoral cumprir sua função social. Na tensão existente entre ambas as normas constitucionais, a saber, o princípio da exclusividade (art. 5o, XXVII, CF/88) e a função social da propriedade intelectual (art. 5o, XXIII, CF/88), há de prevalecer esta última para a análise desse caso concreto.

Note-se que a opção pela supremacia do interesse público, social, que em última análise consubstancia o art. 5o, XXIII, não invalida o princípio da exclusividade positivado na norma do art. 5o, XXVII. Em outros casos concretos, esse princípio será novamente ponderado, podendo, inclusive, prevalecer em face da mesma norma contida no art. 5o, XXIII.

Isso quer dizer que a solução de tensão existente entre direitos fundamentais não será resolvida nos moldes propugnados por Norberto Bobbio para dirimir antinomias no ordenamento. Segundo ele, o conflito de normas seria resolvido no plano da sua validade, expulsando-se do ordenamento aquela incompatível com o sistema. Três seriam os critérios para esse mister, quais sejam, hierárquico, cronológico e o da especialidade.

A tensão porventura existente entre normas constitucionais não poderá jamais ser solucionada com base nesses critérios, pois que, conforme já apontado, não existem normas constitucionais inconstitucionais. Adotado será, portanto, o critério da ponderação, que dirá, no caso concreto, qual das normas em conflito deverá sucumbir em face da outra; sempre portanto, no plano da valoração do conteúdo de cada norma, ou melhor, no conteúdo de cada valor, de cada princípio contido na norma. Jamais no plano da validade.

As normas contidas no inciso XXVII e XXVIII, do art. 5o, da CF/88 serão, portanto, não interpretadas em tese, abstratamente, mas concretizadas em face de sua aplicação ao caso concreto, por modo a que seu sentido seja mais do que subsumido ao fato, mas desenvolvido a partir dele.

2.4- Fundamento Infraconstitucional.

Em sede infraconstitucional, toda a matéria pertinente ao direito autoral encontra-se positivada na Lei n. 9.610/98, verdadeiro microsistema a contemplar normas de caráter civil, processual civil e penal, regulamentando por inteiro os direitos fundamentais garantidos pelos incisos XXVII e XXVIII, da Constituição Republicana de 1988.

Com efeito, especificamente quanto aos incisos supra referidos, predica o art. 28, da LDA que “cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica”, sendo-lhe subseqüente a previsão do artigo 29, de que “depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:”

Corolário, então, do princípio da exclusividade é a necessidade de qualquer usuário solicitar, prévia e expressamente, autorização para todas as formas de utilização da obra intelectual, sem a qual, comete ato ilícito, sancionado pela mesma legislação autoral.

De outro lado, o inciso XXVIII,  “b”, do art. 5o, da CF/88, atinente ao direito de fiscalização do autor, está regulamentado pelo artigo 70, da Lei de Regência que estipula que “ao autor assiste o direito de opor-se à representação ou execução que não seja suficientemente ensaiada, bem como fiscaliza-la, tendo, para isso, livre acesso durante as representações ou execuções, no local onde se realizem.”

Tanto a Constituição Federal, como a Lei de Regência estão a garantir expressamente o direito do autor promover a fiscalização do aproveitamento econômico de suas obras, entendendo corretamente que é através das diversas modalidades de sua utilização que provém a fonte de renda do autor e de sua família.

Tanto o princípio da exclusividade[43] quanto o direito de fiscalização[44] são os dois pilares que fundamentam e sustentam a mecânica dos direitos autorais de execução pública musical, próximo assunto a ser abordado.

3- Direito autoral de execução pública musical.

A definição de “execução pública musical” para o direito autoral é legal, ou seja, provém de dispositivo normativo expresso, a saber, o p. 2o, do art. 68, da LDA, que considera “execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de freqüência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica.”

Constitui, portanto, execução pública a utilização de obras musicais[1] em locais de freqüência coletiva. Estes, por sua vez, são, a teor do p. 3o, do art. 68, da LDA “os teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares e clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, hotéis, motéis, clínicas, hospitais, órgãos públicos da administração direta ou indireta, fundacionais e estatais, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas.”(grifo nosso)

Vê-se que a enumeração não é exaustiva, constituindo, portanto, “números apertus”, a englobar qualquer local de freqüência coletiva onde se executem obras musicais.

Milton Fernandes sugere que o gênero do direito autoral decorrente da utilização de obras intelectuais em locais de freqüência coletiva deveria-se denominar “direito de apresentação pública”, onde estariam contidas as espécies da “execução pública”, que é específica da música, da “representação pública”, relativa às obras teatrais, e outros[46].

Como se está a tratar da “apresentação pública” de obras musicais, afigura-se apropriada, também aos olhos do ilustre professor Milton Fernandes, a denominação de execução pública.

Portanto, os chamados “direitos autorais de execução pública musical” são, por assim dizer, aqueles direitos de autor e conexos que se relacionam diretamente com a “apresentação pública de obras musicais”, que representa, em última análise uma particular modalidade de utilização da obra musical.

De acordo com o princípio constitucional da exclusividade, somente é facultada a execução pública de obras musicais mediante a prévia e expressa autorização dos titulares de direitos autorais e conexos.

Note-se agora como a distinção proposta pelo prof. Milton Fernandes é de suma relevância para a dinâmica dos direitos autorais, uma vez que, à luz da nossa legislação, a autorização concedida para uma forma de utilização da obra musical não se estende às demais.[47]

Pode-se dizer de outra maneira que as diversas modalidades de utilização da obra musical são independentes entre si. Ou seja, fixá-la num fonograma[48], não é a mesma coisa que reproduzi-la[49]; esta, por sua vez, difere-se substancialmente de executá-la publicamente. Para cada qual se faz necessária uma autorização específica, sempre de forma prévia e expressa, para que assim se legitime e legalize a respectiva utilização.

A regulamentar especificamente os direitos de execução pública musical, está o art. 68 da LDA, que estabelece que “sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas.”

Do disposto, conclui-se que qualquer do povo que tenha interesse em promover execução pública de obras musicais deverá solicitar prévia e expressa autorização dos titulares de direitos autorais, incluídos aí tanto os direitos de autor como os que lhe são conexos.

Afigura-se visível a impossibilidade prática de, a cada utilização da obra musical através da modalidade da execução pública, o usuário encontrar todos os titulares de direitos de autor e conexos sobre aquela obra musical específica e solicitar a sua prévia e expressa autorização.       Não seria exagero afirmar que seria completamente inviabilizada a execução pública de canções, que, em nosso País, afigura-se-nos tão cara e preciosa.

A fim de solucionar essa questão de ordem essencialmente prática[50], a Lei de Direitos Autorais estabelece, em seu artigo 97[51],  a faculdade dos titulares de direitos de autor e conexos se associarem, sem intuito de lucro, a fim de promoverem o exercício e a defesa de seus direitos.

A lógica é simples: se a cada titular, individualmente, afigura-se impossível autorizar e fiscalizar a execução pública de suas obras, coletivamente tais práticas se lhes tornam factíveis[52].

Com efeito, se estiverem estruturados em uma associação[53] podem “centralizar” os comandos de autorizar[54] e fiscalizar[55] a execução pública[56] de suas obras.

A faculdade de associação conferida pelo art. 97 é, entretanto, mitigada pelo seu parágrafo primeiro, a estabelecer que “é vedado pertencer a mais de uma associação para a gestão coletiva de direitos da mesma natureza“, sendo certo que a liberdade constitucional de livre associação[57] encontra-se garantida no parágrafo segundo, que informa que “pode o titular transferir-se, a qualquer momento, para outra associação, devendo comunicar o fato, por escrito, à associação de origem.”

As associações existentes para gerenciar os direitos autorais de execução pública musical são comumente chamadas de associações de gestão coletiva de direitos autorais, conforme informa o próprio parágrafo primeiro do art. 97, da LDA.

Interessa notar também que “com o ato de filiação, as associações tornam-se mandatárias de seus associados para a prática de todos os atos necessários à defesa judicial ou extrajudicial de seus direitos autorais, bem como para sua cobrança”[58]. Ou seja, concede a lei de direitos autorais um verdadeiro mandato legal às associações de gestão coletiva a fim de legitimá-las a cumprir o seu mister de exercício e defesa coletiva dos direitos de autor e conexos.

Não obstante, o mandato legal concedido às associações não é de todo absoluto, podendo os titulares de direitos autorais “praticar, pessoalmente, os atos referidos neste artigo, mediante comunicação prévia à associação a que estiverem filiados.”[59]

Garante-se, assim, tanto a liberdade positiva, quanto a negativa de associação, garantias constitucionais previstas, respectivamente, nos incisos XVII e XX, do art. 5o, da CF/88.

Outra manifestação dessas garantias constitucionais é a possibilidade jurídica de existência de inúmeras associações de gestão coletiva de direitos autorais. Com efeito, não poderia a lei de direitos autorais limitá-las quantitativamente, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Mas há que se ressaltar que a multiplicidade de associações, como a existente hoje no Brasil[60],  enfraquece tanto o controle das autorizações como das fiscalizações, quebrando o princípio da gestão coletiva que pretende exatamente “centralizar” referidos comandos, por modo a facilitá-los e torná-los factíveis e exeqüíveis do ponto de vista prático.

Diante desse cenário, qual seja, da coexistência de inúmeras associações de gestão coletiva de direitos autorais[61], imaginou o legislador autoral de 1973[62] uma solução jurídica que poria fim à balbúrdia autoral que sobredita coabitação ocasionava: a criação de um Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – ECAD, cuja finalidade era exatamente centralizar os processos de arrecadação e respectiva distribuição das importâncias relativas ao pagamento dos direitos de autor e conexos, pela utilização através da execução pública musical.

4 – A legitimidade do ECAD

O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – ECAD, foi instituído, portanto, pelo art. 115, da Lei 5.988/73, mas somente entrou em funcionamento em 1o de janeiro de 1977.

A nova lei de direitos autorais recepcionou o ECAD em seu artigo 99[63], mantendo-o, portanto, na qualidade de órgão centralizador das arrecadações e distribuições dos direitos autorais de execução pública musical.

Nessa condição, o Escritório Central não possui finalidade de lucro, e é dirigido e administrado pelas associações que o integram[64]. São elas que, em assembléia geral, decidem as atividades e os rumos adotados pelo ECAD, que, em última análise, nada mais representa que um verdadeiro escritório de cobrança posto a serviço das associações, uma longa manus executiva, com legitimidade legal para sua atuação.

De fato, por estar expressamente previsto em lei, o ECAD possui legitimidade legal para o exercício de suas atividades, agindo extrajudicial e judicialmente como substituto processual dos titulares a ele vinculados[65].

Assim, tem ele legitimidade processual para figurar no pólo ativo da ação de cobrança cujo pedido é o pagamento de direitos autorais de execução pública musical, independentemente de comprovação de filiação dos titulares das obras executadas, uma vez que é ele o único órgão autorizado a promover este gerenciamento.

A legitimidade do ECAD foi severamente combatida, em juízo e fora dele, inclusive com a argüição de sua inconstitucionalidade através da ADIN n. 2054-4, proposta pelo partido político PST – Partido Social Trabalhista.

O pedido da ação direta de inconstitucionalidade buscava a invalidação e conseqüente expulsão do ordenamento jurídico brasileiro do artigo 99 da LDA, que mantinha o ECAD como entidade centralizadora obrigatória para as práticas de gestão coletiva de direitos autorais.

A fundamentação principal da ADIN concentrava-se na garantia constitucional da liberdade negativa de associação, consubstanciada pelo artigo 5o, XX, da CF/88, a prescrever que “ninguém será compelido a associar-se ou a manter-se associado”.

A decisão colegial do Supremo Tribunal Federal, liderado pelo Excelentíssimo Ministro  Sepúlveda Pertence, decidiu, por 7 votos a 2, onde restou vencido o relator Ilmar Galvão, pela constitucionalidade do dispositivo em face do previsto no parágrafo único do art. 98, da LDA, que faculta aos titulares de direitos de autor e conexos, pessoalmente, promover o exercício e a defesa de seus direitos.

Com esse fundamento, principalmente, sepultou-se a tentativa leviana de retirar a legitimidade legal conferida ao ECAD para a administração e defesa dos direitos autorais de execução pública musical, confirmando-o como órgão único e central da gestão coletiva desses direitos.

5 – Conclusão.

A título de conclusão, pode-se afirmar que toda a sistemática da gestão coletiva de direitos autorais de execução pública musical encontra-se sustentada e fundamentada nos dois direitos fundamentais garantidos pelos incisos XXVII e XXVIII, da Constituição Brasileira de 1988, como exaustivamente comentado.

O princípio da exclusividade, aliado ao direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras intelectuais constituem, assim, os dois pilares sobre os quais estão erguidos tanto o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, como todas as 10 (dez) associações que o compõem.

Ambas garantias encontram-se também devidamente regulamentadas pela Lei de Regência, cujas disposições normativas estão aptas a solucionar a grande maioria dos problemas já existentes no âmbito da propriedade autoral, assim como aqueles que ainda estão por vir.

Quanto a estes, cumpre lembrar que, na ausência de dispositivo expresso da Lei Autoral, as garantias constitucionais são fontes normativas suficientes a concretizar tanto o princípio da exclusividade como o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras intelectuais.

6 – Bibliografia

Ascenção, José de Oliveira. Direito Autoral, 2a ed. Forense.

Bonavides, Paulo. “Curso de Direito Constitucional”. 7a ed. Malheiros. São Paulo. 1997.

Canotilho, J. J. Gomes. “Direito Constitucional”. 6a ed. Livraria Almedina. Coimbra. 1995.

Chaves, Antônio. Direito Autoral de Radiodifusão.

Fernandes, Milton. “Pressupostos do Direito Autoral de Execução Pública”, Belo Horizonte, 1967

Gazeta Mercantil, ed. 15 de fevereiro de 2002, p. A-8

Hesse, Konrad. “A Força Normativa da Constituição”.

Monteiro, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Parte Geral. Ed. Saraiva. São Paulo, 2003.

Perlingieri, Pietro. “Perfis do Direito Civil”. Ed. Renovar.

Tepedino, Gustavo. A constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas diante do novo código, in “Direito Civil: Atualidades”. Del Rey, 2003.

UBC em Pauta – Ano 3, n. 7


[1] Desde 1976 realizada pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – ECAD

[2] Tanto a Lei 5.988/73 quanto a Lei 9.610/98.

[3] UBC em Pauta – Ano 3, n. 7, pg. 3

[4] Gazeta Mercantil, ed. 15 de fevereiro de 2002, p. A-8

[5] Chaves, Antônio. Direito Autoral de Radiodifusão. Pág. 21

[6] Ascenção, José de Oliveira. Direito Autoral, 2a ed., p. 15-16.

[7] Idem.

[8] Lei 9.610/98.

[9] Lei 5.988/73.

[10] “art. 22 – Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.”

[11] “art. 89 – As normas relativas aos direitos de autor aplicam-se, no que couber, aos direitos dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores fonográficos e das empresas de radiodifusão.”

[12] “art. 7o – São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: (…)

[13] “art. 3o – Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis.”

[14] “art. 1225 – São direitos reais:

I – a propriedade;

[15] Monteiro, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Parte Geral. Ed. Saraiva. São Paulo, 2003. pág. 96.

[16] Tepedino, Gustavo. A constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas diante do novo código, in “Direito Civil: Atualidades”. Del Rey, 2003. Pág. 115.

[17] Este fenômeno tem sido chamado pela doutrina como a publicização do direito privado.

[18] É cediço que o CCB de 1916 inspirou-se no Code Francês de Napoleão, promulgado em 1804.

[19] Perlingieri, Pietro. “Perfis do Direito Civil”. Ed. Renovar. Pág . 2: “O direito positivo (vale dizer, o direito expresso por fontes determinadas e reconhecidas, predominantemente por escrito) pode exercer uma dupla função, dependendo do fato de se propor a simplesmente conservar as situações presentes na sociedade, adaptando as próprias regras às de natureza social preexistentes; ou a modificar a realidade criando novas regras.”

[20] Expressão muito utilizada por Paulo Bonavides.

[21] O velho direito constitucional, por sua vez, estava voltado para a regulamentação do próprio funcionamento do Estado, conferindo especial importância à separação dos poderes. É o que se vê da lição de Paulo Bonavides: “Enfim, podemos sintetizar que, ao tempo do velho Direito Constitucional – o da separação de poderes – a tensão transcorria menos no campo das relações dos cidadãos com o Estado – a filosofia da burguesia liberal cristalizada na racionalidade jurídica dos Códigos já pacificara grandemente essas relações! – do que no domínio mais sensível e delicado das relações entre os Poderes, donde pendia, perante a força do Estado, e a desconfiança remanescente das épocas do absolutismo, a conservação da liberdade em toda a sua dimensão subjetiva. Nesse contexto avultava e se mantinha sempre debaixo de suspeita o Poder Executivo, sobretudo nas monarquias constitucionais, onde ficava mais ostensivamente sujeito aos freios e controle do sistema parlamentar.

Já com o novo Direito Constitucional, a tensão traslada-se, de maneira crítica e extremamente preocupante, para a nervosa esfera dos direitos fundamentais. A partir de então, a Sociedade procura aperfeiçoar o sistema regulativo de aplicação desses direitos, em termos de um constitucionalismo assentado sobre as incoercíveis expectativas da cidadania postulante. (Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Malheiros Editores. 7a ed. São Paulo, 1997. pág. 539.

[22] A título de exemplo pode-se citar a lei do inquilinato, o estatuto da criança e do adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e a própria Lei de Direitos Autorais.

[23] Tepedino, Gustavo. Op. cit. pág. 120.

[24] Perlingieri afirma que “A Constituição ocupa o lugar mais alto na hierarquia das fontes, precedendo, na ordem, as normas da Comunidade Européia, as leis ordinárias (e por isso os códigos, que são leis ordinárias, incluindo o Código Civil), as leis regionais, os decretos do Poder Executivo e outro tipos de normas, usos, etc.”(op. cit. pág. 4-5)

[25] É também de Perlingieri o seguinte ensinamento: “A Constituição da República assumiu, em relação a este problema, uma posição diversa. Uma coisa é ler o Código naquela ótica produtivista, outra é ‘relê-lo’ à luz da opção ‘ideológico jurídica’ constitucional, na qual a produção encontra limites insuperáveis no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.” (op. cit. pág. 4)

[26] Como se sabe, são aqueles previstos no art. 5o, da CF/88.

[27] Perlingieri sugere que “Pode-se, portanto, afirmar que, seja na aplicação dita indireta – que sempre acontecerá quando existir na legislação ordinária uma normativa específica, ou cláusulas gerais ou princípios expressos – seja na aplicação dita direta – assim definida pela ausência de intermediação de qualquer enunciado normativo ordinário -, a norma constitucional acaba sempre por ser utilizada.”, e conclui, mais à frente que “Portanto, a normativa constitucional não deve ser considerada sempre e somente como mera regra hermenêutica, mas também como norma de comportamento, idônea a incidir sobre o conteúdo das relações entre situações subjetivas, funcionalizando-as aos novos valores.” (op. cit. pág. 12)

[28] Também chamada de pós-positivismo material.

[29] Bonavides afirma que “Aqueles valores e princípios representam, por conseguinte, a matéria prima da Nova Hermenêutica; esta, outra coisa não é senão a própria teoria material da constituição.” (op. cit. pág. 535)

[30] Compreendê-la como direito significa reconhecer a incorporação de valores na Constituição. É o que se depreende deste trecho da obra de Paulo Bonavides: “O Direito Constitucional, ao criar, assim, a Nova Hermenêutica, que lhe é específica, acolheu no plano científico do Direito as considerações axiológicas, mas referidas unicamente àqueles valores vazados no direito positivo e que desde muito, por um certo ângulo, constituem a matéria-prima do sociologismo jurídico ou do concretismo, de Ehrlich a Karl Engisch. (op. cit. pág. 535).

[31] Bonavides, Paulo. Op. cit. pág. 535.

[32] A respeito, Bonavides entende que “na Velha Hermenêutica interpretava-se a lei, e a lei era tudo, e dela tudo podia ser retirado que coubesse na função elucidativa do intérprete, por uma operação lógica, a qual, todavia, na acrescentava ao conteúdo da norma; em a Nova Hermenêutica, ao contrário, concretiza-se o preceito constitucional, de tal sorte que concretizar é algo mais do que interpretar, é, em verdade, interpretar com acréscimo, com criatividade. Coloca-se o intérprete diante da consideração de princípios, que são as categorias por excelência do sistema constitucional. (op. cit. pág. 585)

[33] art. 5o, XXVII;

[34] art. 5o, XXVIII;

[35] art 41, 42, 43, 44 e 45, da Lei 9.610/98;

[36] O artigo 29, da Lei 9.610/98 estabelece o princípio da exclusividade, consagrado no inciso XXVII, do art. 5o, da CF/88, enunciando, em caráter exemplificativo, diversas formas de utilização da obra intelectual:

“art. 29 – Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

X – quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas” ;

[37] Convém lembrar, a respeito, que José Joaquim Gomes Canotilho atribui esse grau máximo de efetividade concedido aos princípios fundamentais ao princípio interpretativo da “máxima efetividade”, que, segundo ele, também é denominado de “princípio da eficiência ou princípio da interpretação efectiva” e “pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais.”(in “Direito Constitucional”, 6a ed. Livraria Almedina, Coimbra, 1995. Pág. 227)

[38] A respeito, Bonavides assevera que “Poder-se-ia, desse modo, vislumbrar na proporcionalidade não somente um critério de contenção do arbítrio do poder e salvaguarda da liberdade, mas, por igual, em nível hermenêutico, um excelente mecanismo de controle, apto a solver, por via conciliatória, problemas derivados de uma eventual colisão de princípios; isto sobretudo tocante à interpretação de direitos fundamentais. Seguindo, assim, a trilha dos constitucionalistas da Nova Hermenêutica, urge assinalar que nenhum desses princípios, deixando de ser aplicado na hipótese conflitual, é sacrificado ou expulso do ordenamento jurídico, qual sói acontecer com a norma inconstitucional. Em outras palavras, o princípio cuja aplicabilidade ao caso concreto se viu recusada por ensejo da ponderação estimativa de valores, bens e interesses, levada a cabo pelo intérprete, continua a circular válido na corrente normativa do sistema, conservando, intacta, a possibilidade de aplicação futura.”(op. cit. 587)

[39] Posicionamento também adotado por J. J. Gomes Canotilho, ao afirmar que “A probabilidade da existência de uma norma constitucional originariamente inconstitucional é bastante restrita em estados de direito democrático-constitucionais. Por isso é que a figura das normas constitucionais inconstitucionais, embora nos reconduza ao problema fulcral da validade material do direito, não tem conduzido a soluções práticas dignas de registro.” Ademais disso, acrescenta, “o problema das normas constitucionais inconstitucionais pode reconduzir-se, antes, a um conflito de princípios/valores susceptíveis de solucóes, prima facie, harmonizatórias.” (op. cit. pág. 235)

[40] Canotilho assevera que “A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação de princípios reciprocamente incompatíveis, com a conseqüente destruição da tendencial unidade axiológico-normativa da lei fundamental. Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo entre os vários princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma <<lógica do tudo ou nada>>, antes podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu <<peso>> e as circunstâncias do caso.” (op. cit. pág. 190).

[41] O princípio da unidade da Constituição é concebido por Canotilho da seguinte forma: “O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade (não há normas só formais, nem hierarquia de supra-infra-ordenação dentro da lei constitucional). Como se irá ver em sede de interpretação, o princípio da unidade normativa conduz à rejeição de duas teses, ainda hoje muito correntes na doutrina do direito constitucional: (1) a tese das antinomias normativas; (2) a tese das normas constitucionais inconstitucionais. O princípio da unidade da constituição é, assim, expressão da própria positividade normativo-constitucional e um importante elemento de interpretação.” (op. cit. pág. 191-192).

[42] Bonavides esclarece: “Verificamos, então, o seguinte: há na Constituição normas que se interpretam e normas que se concretizam. A distinção é relevante desde o aparecimento da Nova Hermenêutica, que introduziu o conceito novo de concretização, peculiar à interpretação de boa parte da Constituição, nomeadamente dos direitos fundamentais e das cláusulas abstratas e genéricas do texto constitucional. Neste são usuais preceitos normativos vazados em fórmulas amplas, vagas e maleáveis, cuja aplicação requer do intérprete uma certa diligência criativa, complementar e aditiva para lograr a completude e fazer a integração da norma na esfera da eficácia e juridicidade do próprio ordenamento. Na Velha Hermenêutica, regida porum positivismo lógico-formal, há subsunção; em a Nova Hermenêutica, inspirada por uma teoria material de valores, o que há é concretização; ali, a norma legal, aqui, a norma constitucional; uma interpretada, a outra concretizada.(op. cit. pág. 544).

[43] Art. 5o, XXVII, da CF/88, e art. 28, da Lei 9.610/98.

[44] art. 5o, XXVIII, da CF/88, e art. 70, da Lei 9.610/98.

[45] No conceito maior de obras musicais, encontram-se também contempladas as obras lítero-musicais, que são aquelas que, além de melodia, contém texto ou “letra”.

[46] O ilustre professor Milton Fernandes, criticando as preferências dos legisladores em adotar a terminologia execução e representação pública, afirma que “O nome genérico de apresentação pública envolve tôdas as manifestações dêste direito. Execução Pública se refere à obra musical; representação pública à peça de teatro, à ópera. Há ainda o direito de recitação pública, referente à poesia; a leitura pública para outros gêneros literários; o direito de exibição e de exposição para as artes plásticas e outras modalidades de obras que se prestam a mostras; o direito de televisão e radiodifusão. Todos êstes podem, genericamente, com propriedade, ser denominados direitos de apresentação pública.” (in “Pressupostos do Direito Autoral de Execução Pública”, Belo Horizonte, 1967, p. 60)

[47] É o que dispõe o artigo 31, da LDA: “Art. 31 – As diversas modalidades de utilização de obras literárias, artísticas ou científicas ou de fonogramas são independentes entre si, e a autorização concedida pelo autor, ou pelo produtor, respectivamente, não se estende a quaisquer das demais.”

[48] Fonograma, segundo o art. 5o, IX, da LDA é “toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual.”

[49] Reprodução, a teor do art. 5o, VI, da LDA significa “a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica, ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido.”

[50] Que se origina obviamente de uma situação jurídica posta pela Constituição.

[51] “art. 97 – Para o exercício e defesa de seus direitos, podem os autores e os titulares de direitos conexos, associar-se sem intuito de lucro.”

[52] Milton Fernandes afirmava que “A impossibilidade material de os autores concederem, pessoalmente, a licença para a apresentação pública de suas obras e de fiscalizar as contrafações deu origem no Brasil e em quase tôdas as nações do mundo, à formação de sociedades com êste objetivo. Através de escritórios e agentes disseminados em todo o país, se constituem em sentinelas dos autores de obras intelectuais, a cujos direitos oferecem permanente proteção. Às vezes incompreendidas e criticadas, prestam os mais relevantes serviços à cultura nacional e aos interesses de seus associados.”(ob. cit. p. 64)

[53] Esta, por sua natureza jurídica, jamais poderá ter intuito lucrativo, a teor do art. 53, do Novo Código Civil, a estabelecer que “constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos.”

[54] Corolário do princípio da exclusividade (art. 5o, XXVII, CF/88, art. 28, 29 e 68, da LDA).

[55] Decorrente do direito de fiscalização sobre o aproveitamento econômico das obras (art. 5o, XXVIII, CF/88, art. 70, LDA).

[56] Lembrando apenas que o conceito de execução pública é conferido pelo art. 68, p. 2o e 3o, da LDA.

[57] “art. 5o – (…)

XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;”

[58] Art. 98, da LDA.

[59] Parágrafo único do artigo 98, da LDA.

[60] Existem hoje no Brasil 10 associações de gestão coletiva de direitos autorais, a saber: ABRAC, ABRAMUS, AMAR, ANACIM, ASSIM, ATIDA, SBACEM, SICAM, SOCINPRO, UBC.

[61] Cuja coabitação é sustentada constitucionalmente através dos incisos XVII e XX do art. 5o, da CF/88.

[62] Através do artigo 115, da Lei 5.988/73, que dispunha que “as associações organizarão, dentro do prazo e consoante as normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Direito Autoral, um Escritório Central de Arrecadação e Distribuição dos direitos relativos à execução pública, inclusive através da radiodifusão e da exibição cinematográfica, das composições musicais ou lítero-musicais e de fonogramas.”

[63] “art. 99 – As associações manterão um único escritório central para arrecadação e distribuição, em comum, dos direitos relativos à execução pública das obras musicais e lítero-musicais e de fonogramas, inclusive por meio da radiodifusão e transmissão por qualquer modalidade, e da exibição de obras audiovisuais.”

[64] p. 1o, do art. 99 – “O escritório central organizado na forma prevista neste artigo não terá finalidade de lucro e será dirigido e administrado pelas associações que o integrem.”

[65] P. 2o, do art. 99 – “O escritório central e as associações a que se refere este Título atuarão em juízo e fora dele em seus próprios nomes como substitutos processuais dos titulares a eles vinculados.”